Templeton prize
Discurso de Jean Vanier
na cerimônia de entrega do prêmio Templeton,
na Igreja de St Martin-in-the-Fields,
Londres, 18 de Maio de 2015.
Boa tarde a todos: Reverendo Dr. Sam
Wells, Jennifer Templeton Simpson, Heather Templeton Dill, eminentes convidados,
Senhoras e Senhores. Em primeiro lugar gostaria de agradecer ao Doutor
Templeton e a sua maravilhosa família e, é claro, ao juri. Muito obrigado por
este magnífico prêmio que me atribuíram como reconhecimento da beleza e do valor
das pessoas com deficiência intelectual.
Essa beleza revelou-se na vida partilhada, em conjunto, na Arca, e no
acompanhamento mútuo vivido no Movimento Fé e Luz.
As pessoas com deficiência
intelectual estão no coração das nossas comunidades; foram elas que revelaram a
tantas pessoas – as suas famílias, aos assistentes e aos amigos – os seus dons
humanos e espirituais, e foram elas que inspiraram o crescimento fecundo da
Arca e de Fé e Luz, no mundo inteiro. É a elas que o prêmio será entregue para
que muito mais pessoas com deficiência intelectual no mundo possam crescer para
uma liberdade interior cada vez maior e para descobrir o seu próprio valor
fundamental enquanto seres humanos e filhos de Deus. Por sua vez, elas
tornar-se-ão capazes de ajudar numerosas pessoas ditas «normais», prisioneiras
das nossas culturas orientadas para o poder e para o sucesso pessoal, a descobrir
o que significa ser humano.
Arca e Fé e Luz fazem parte de uma
verdadeira revolução; no passado as pessoas com deficiência intelectual foram,
muitas vezes, consideradas como uma vergonha para os seus pais e, em alguns
casos, como castigo de Deus. Seus pais e aqueles que cuidam delas foram
frequentemente considerados como pessoas formidáveis, ou mesmo «santos», porque
se ocupavam de pessoas «assim».
Hoje em dia, é cada vez mais evidente
que são as pessoas com deficiência intelectual que nos humanizam e nos curam, se
entrarmos numa verdadeira relação de
amizade com elas. Não são castigo de Deus, pelo contrário, são um caminho para
Deus.
Quero agradecer a todos os que nos
acolhem hoje, por ocasião desta cerimônia e pertencem a esta magnífica igreja
histórica de St Martin-in-the-Fields, conhecida pela sua abertura e seu
acolhimento aos sem-teto. Obrigado ao seu vigário Samuel Wells que, no seu
livro “A Nazareth Manifesto”, revela que Jesus veio ensinar-nos não
somente a fazer algo para as pessoas sem-teto, mas a estar com elas. Sim, este
é o verdadeiro segredo da Igreja e o segredo das nossas comunidades e,
esperamos que um dia seja, também, o segredo de toda a humanidade: estar com. Estar
com é viver juntos, entrar em relação mútua de amizade e de benevolência. É
rir e chorar juntos, é sermos reciprocamente transformados uns pelos outros. Cada
pessoa torna-se um presente para a outra e revela aos outros que todos fazemos
parte de uma imensa e maravilhosa família humana, a família de Deus. Somos
todos profundamente idênticos enquanto seres humanos, mas também profundamente
diferentes. Cada um de nós tem um dom especial; cada um tem uma missão única.
Esta família maravilhosa, desde suas
origens até nossos dias, com todos os que se foram disseminando neste planeta,
de geração em geração, é composta por pessoas de diferentes culturas e diversas
competências; cada uma delas tem as suas forças e as suas fraquezas e cada uma
delas é preciosa.
A evolução desta família, desde suas
origens até nossos dias, foi-se envolvendo em guerras, violências e uma procura
incessante de domínio sobre os outros e de acumulação de posses. É também uma
evolução contra a qual os profetas de paz nunca deixaram de gritar: «Paz, Paz»
apelando às pessoas para que se encontrassem umas com as outras e que
descobrissem que são belas e preciosas.
Muitos de nós neste mundo continuamos
a aspirar à paz e à unidade. Contudo, muitos de nós permanecemos presos nas
nossas culturas, envolvidos nas lutas pelo poder e na acumulação de riquezas.
Como poderemos libertar-nos de uma cultura que não incita as pessoas a
tornarem-se responsáveis pela família humana e pelo bem-comum, mas as incita ao
sucesso individual e ao domínio sobre os outros? Como será possível
libertarmo-nos dos tentáculos e dos entraves dessa cultura, para nos tornarmos
livres de sermos nós mesmos; livres dos nossos egos sobredimensionados e das
nossas compulsões; livres de amar os outros como eles são: diferentes e contudo
iguais a nós?
Estar com, é também comermos juntos,
como Jesus nos convida a fazer: «Quando deres um banquete, não convides a tua
família nem os teus amigos, nem os teus vizinhos ricos, mas convida os pobres, os
estropiados, os coxos, os cegos; então serás bem-aventurado». Ser
bem-aventurado, diz-nos Jesus, é convidar os pobres para a nossa mesa (Lc 14). Sejamos claro, não são
somente os convidados que serão bem-aventurados porque se alegram em uma festa;
é o anfitrião que é bem-aventurado pelo seu encontro com os pobres. Por que o
anfitrião é dito bem-aventurado? Não será porque o seu coração fica
transformado quando ele é tocado pelos dons maravilhosos do Espírito escondidos
nos corações dos pobres? Este foi o dom do meu caminho pessoal, e o de tantos
outros. Fomos guiados por aqueles que são frágeis no caminho da bem-aventurança
do amor, da humildade e da paz.
Para sermos transformados precisamos
primeiro nos encontrar com pessoas que são diferentes e não os membros da nossa
família, os amigos ou os vizinhos que se parecem conosco. Encontremos-nos para
além das diferenças – intelectuais, culturais, nacionais, raciais ou religiosas.
É a partir desse encontro inicial que
podemos construir uma comunidade e lugares de pertença onde podemos viver juntos.
Uma comunidade nunca é chamada a ser
um grupo fechado onde nos escondemos atrás de barreiras idênticas do grupo, preocupada
unicamente com o seu bem-estar e a sua própria visão, como se fosse a única ou
a melhor.
Uma comunidade não pode ser uma
prisão nem uma fortaleza. Infelizmente, durante muito tempo essa foi a visão
redutiva de certas Igrejas e religiões, pensando cada uma que fosse a melhor,
acreditando que possuia todo o conhecimento e a verdade. Como consequência, não
havia comunicação ou diálogo entre elas.
Não haverá sempre o perigo de nos
fecharmos nos nossos próprios grupos – sejam eles profissionais, religiosos ou
familiares – nos quais nunca encontramos aqueles que são diferentes de nós?
Uma comunidade é, pelo contrário, um
lugar de unidade apesar das diferenças. As pessoas estão unidas no amor e abertas
aos outros.
A comunidade é então como uma fonte
ou como uma luz brilhante, onde se experimenta e se revela um caminho de vida, permanecendo
aberto aos outros e interessado por eles. É um lugar de paz que revela o
caminho para a paz e para a unidade da família humana.
A comunidade é um lugar de pertença
onde cada pessoa pode crescer para se tornar plenamente ela mesma. Trata-se de
pertencer para que seja possível aceitar tornar-se outro. Pertencemos uns aos
outros e aí cada membro pode tornar-se cada vez mais humano, mais capaz de
amar, mais livre, mais aberto aos outros e, em especial, aos que são diferentes.
Quando cada membro pode desenvolver o seu dom único e ajudar os outros a
desenvolver o seu, os membros deixam de estar em competição, passam a estar em
colaboração, em cooperação e em apoio mútuo. Tornar-se outro, não é provar que
eu sou melhor que ele, mas muito mais é interajudar-nos abrindo os nossos
corações. Assim a comunidade é o lugar de transformação. A comunidade é o lugar
de pertença omde cada um de nós pode ser transformado e tornar-se plenamente
humano.
Que alternativas temos, quanto ao
nosso crescimento humano? Uma pertença que seja rígida demais abafa o
desenvolvimento pessoal; pelo contrário, demasiado desenvolvimento pessoal ou
um crescer sem pertença pode transformar-se numa luta para atingir o topo, ou
conduzir à solidão e à angústia. Ganhar, é sempre ficar sozinho; e, é claro,
ninguém ganha durante muito tempo.
Assim, a comunidade não é um grupo
fechado, mas um caminho de vida que ajuda cada pessoa a crescer para a sua
plenitude humana. Os pilares da comunidade são a missão e o amor mútuo. Juntar-nos-emos
para viver essa missão, e também para ser um sinal de amor; ou melhor para
crescer no amor uns dos outros. É a missão que nos reúne e estando juntos
aprendemos a amar-nos uns aos outros.
Na Arca e em Fé e Luz, a nossa missão
é promover o surgimento de comunidades onde as pessoas mais frágeis estejam no
centro e onde possam crescer na sua humanidade e na sua capacidade de amar.
A comunidade é, então, um lugar onde
aprendemos como nos amar uns aos outros. Crescer no amor é um caminho longo e
difícil; precisa de tempo. A Arca e Fé e Luz não são apenas lugares onde fazemos
bem às pessoas com deficiência intelectual. São lugares de relação onde
crescemos juntos no amor.
Mas o que é o amor? Esta palavra foi
muitas vezes reduzida a experiências emocionais ou atos de bravura de soldados
que morriam por amor ao seu país.
Para mim, amar é reconhecer que o
outro é uma pessoa, que é precioso, importante e que tem valor. Cada pessoa tem
um dom a dar aos outros. Cada pessoa tem a sua missão no interior da grande família
humana. Cada pessoa revela o rosto secreto de Deus. Precisamos uns dos outros
para crescer nesse amor sagrado, que implica o amor daqueles que são diferentes,
aqueles que me fazem sair das minhas dobradiças, e me conduzem para fora dos
meus muros de proteção, por causa da diferença das suas ideias, do seu
temperamento, da sua cultura ou da sua maneira de se aproximarem de nós.
A comunidade é um lugar em que
resvalamos uns nos outros, exatamente nos nossos pontos sensíveis. Deste modo,
com um pouco de sorte, resvalamo-nos com alguns traços de nossa personalidade,
cansativos ou azedos, para que nos tornemos verdadeiramente nós mesmos.
Amar é então ver no outro o coração
da pessoa escondido por detrás de tudo o que nos incomoda. É por isso que amar,
de acordo com as palavras de S. Paulo, é ser paciente, o que significa esperar
e perseverar. É ter confiança e acreditar que sob toda a desordem aparente
dessa pessoa, existe o segredo do seu ser, existe o seu coração. Na Arca, algumas
pessoas que acolhemos têm angústias profundas e podem ser até violentas. Por
vezes é difícil viver em comunidade com elas. Temos que ser pacientes e
acreditar que o seu verdadeiro eu emergirá, pouco a pouco. Também temos que ser
pacientes conosco mesmos e acreditar que, se tentarmos amar e mantermo-nos
abertos a uma espiritualidade de amor, o nosso eu verdadeiro emergirá também
pouco a pouco.
Se amamos, se amamos verdadeiramente
as outras pessoas, se acreditamos nelas, então elas serão transformadas e nós
também seremos transformados. A comunidade é então um lugar de cura, de
transformação e de humanização das pessoas. É um lugar onde a nossa missão é
crescer no amor e no perdão, e isso é verdadeiramente trabalhoso…
Se não quiser ser transformado nem
crescer no amor, então não faça parte de uma comunidade. Quando encontramos forças
para aceitar as pessoas como elas são e para encontrar com elas no seu ser mais
profundo, elas abrem-nos ao amor.
As pessoas que não têm grandes dotes
intelectuais têm, pelo contrário, dons de coração únicos e maravilhosos, e podem
abrir-nos para o amor de uma maneira muito especial. O seu grito não reclama crédito,
conhecimentos ou poder, mas pede simplesmente para viver uma relação pessoal de
amor que lhes dará a vida e lhes revelará que elas são preciosas.
Permitam-me que vos conte a história
de François, um rapazinho com
deficiência intelectual, que fazia a sua primeira comunhão em uma igreja
de Paris. Depois da missa, houve uma linda festa de família. O tio, que era seu
padrinho, veio ter com a mãe de François para lhe dizer: «A celebração foi tão
bonita! É pena que ele não tenha entendido nada!» François, ao ver as lágrimas nos olhos da mãe,
disse-lhe: «Não chores, mãe, Jesus ama-me como eu sou».
Uma relação pessoal cresce até nos
divertirmos juntos e que possamos dizer: «Estou feliz de viver contigo». As
pessoas com deficiência intelectual, com seu coração simples e a sua capacidade
de serem elas próprias, de amar sem vergonha, de serem livres de serem «malucas»,
levam os nossos próprios corações a emergir para sermos livres e nos tornarmos,
ouso dizê-lo, «malucos».
Não é verdade que há em cada um de
nós uma aspiração a tornarmo-nos como crianças e a divertirmo-nos juntos como
os meninos? Essa loucura não será o sinal da libertação dos nossos corações
para amar? É por esse dom da libertação que agradeço do fundo do coração às
pessoas com deficiência intelectual com as quais partilhei esses últimos 50 anos
e o que elas me ensinaram e deram. É em nome delas e com elas que aceito o
prêmio Templeton 2015. Obrigado e paz a todos vós.
18.05.2015
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CONTATO: Donald Lehr
–
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