Ao iniciar esta reflexão, sinto-me até “perdido” diante de tão imensa importância, que se encontra no ato de orar, que me faltam palavras que me permitam falar dele.
Porém, já afirmei ser o orar um ato, e se assim o é, como acredito, implica um movimento;
um sair; uma caminhada; um direcionamento; um esforço; uma comunicação; um sentimento; uma certeza; um escorar-se e ancorar-se; um dinamismo; um encontro.
Entendo o orar, primeiramente, como um sair. Sair do homem de si mesmo, mas não para um vazio. Sair de si sem deixar de ser homem. Sair de si sem abandonar ou desprezar seu corpo, como também, sem ignorar a alma espiritual que completa este corpo para que seja homem. Sair de si consigo; sem renegar o que tem, como tem, como está, etc. Sair de si para algo, para alguém. Não para o vazio; não para algo estranho ou inatingível. Sair de si para uma caminhada.
Ninguém caminha por caminhar. Não tem sentido caminhar, pelo mero fato de o estar fazendo. O caminhar não encontra respostas em si mesmo. No máximo encontrará pistas, setas que apontam algo ou alguém. A caminhada é um movimento; é um seguir compassado de passos que se seguem, mas direcionados.
Os passos não são soltos, bobos ou bêbados, jogados numa estrada desorientadamente. Eles têm um destino, uma meta. Se seguindo em frente, se voltando, se parando para uma pausa, há uma direção, há um objetivo, há um voltar-se ou seguir para um ponto, uma chegada, uma referência.
Existe um direcionamento para algo ou alguém. Não é possível sair de si e caminhar para si sem antes ter-se direcionado a um outro. Não é possível refrescar os pés , sem que antes eles tenham sido aquecidos: talvez por uma longa caminhada; talvez por um pisar descalço na areia quente; porém, sempre com uma direção.
Mas tudo na vida exige esforço. Até para caminhar tem de existir um esforço. Deve existir esforço no escolher o caminho, no conhecer a estrada, no controlar a velocidade dos passos, como também, no direcionar dos mesmos. A vida do homem só é possível, se ela for permeada do esforço.
Existe realização para o homem quando ele se sente esforçado. É gratificante poder sair de si consigo, caminhar seguramente, com passos prudentes e consistentes, num caminho sinalizado, onde vê-se e tem-se a consciência de onde se quer chegar, e sabe-se que o esforço teve um papel significativo nas chegadas, nas vitórias, nas concretizações, etc. Quando o homem se esforça para algo, é como se confirmasse para si mesmo o desejo de seguir em frente. É como se dissesse: eu quero continuar; eu não posso desistir; eu sou um vencedor; conseguirei, tenho certeza. E o esforço não é um insignificante sopro no ar. Tem o seu porquê. Tem o seu objetivo, o seu sentido. Este sentido é encontrado sempre em algo ou alguém, mas quando encontrado em algo, sempre o é em vista de alguém, em benefício de alguém, em razão da existência de alguém. O esforço é um “canal de comunicação”.
Comunicar-se é próprio do ser humano. Onde não existe razão, conhecimento, inteligência, não pode haver comunicação. O ser humano tem a possibilidade, e das criaturas só ele, e durante sua caminhada relacionar-se consigo mesmo, e com outro fora dele. O homem pode conhecer-se e dar-se a conhecer, na medida em que vai aprofundando o ritmo dos passos; que vai se dispondo a interagir; que vai “criando” uma intimidade, que aos poucos vai se intensificando com o desejo de conhecer. É assim que vai surgindo a comunicação. É como se um passo fosse dizendo o melhor lado da estrada para se andar. É como se os passos dialogassem a respeito das pedras que estavam no caminho, ou do rio no qual puderam refrescar-se. É como se um passo dissesse para o outro que a estrada “não foi feita para embelezar as margens, mas para encurtar distâncias, aproximar pessoas, facilitar acesso”.1 Comunicar é partilhar da vida de outro, não sem antes poder estar bem consigo e partilhar da própria vida. A comunicação remete a uma intimidade, um sentimento profundo. Esta intimidade é um dispor-se, e este não brota senão de uma relação, que se molda de acordo com a intensidade da entrega de uma pessoa para com a outra.
No meu ver, não existe exemplo que sinalize melhor esta intimidade da qual tenho falado do que a relação que há entre um bebê e sua mãe. Naquele amamentar o filho, a mãe transmite, não só o leite materno, mas o transmite carregado de sentimento. A comunicação é a menos formal possível; o sorriso da mãe desabrocha quando o filho também sorri. Todo o gesto da mãe é carregado de sentido e sentimento. Ela sente que é uma parte de si que se apresenta naquele bebê.
Ela está tão ligada àquela criança que, o bem-estar desta lhe faz respirar suavemente e sentir-se bem, e da mesma forma, quando esta sofre por algum motivo, o motivo é suficiente para que sofra também a mãe. Isso tudo porque naquela relação existe uma dose forte de amor, carinho, compreensão, comunicação intensiva, afeto, enfim, uma série de sentimentos que só pode surgir de boas relações, de uma intimidade profunda, de um mergulhar na vida do outro, e permitir que o outro mergulhe em sua vida também; é uma participação na realidade do outro e na própria realidade; é a harmonia dos passos naquele caminho direcionado, onde pode-se andar “despreocupadamente, como quem quer saborear o gosto de cada passo”2; uma harmonia que permite os passos caminharem sem forçar um ao outro, sabendo um respeitar os limites do outro, diminuindo a velocidade quando necessário. “Quando há esse diálogo harmonioso de linguagem, a chegada se vai revelando a cada passo”.3
Todo sentimento bom, introduzido numa relação, participado numa comunicação, vivido numa intimidade, gera no ser humano a consciência, mesmo que não saiba expor em palavras, do sair de si sem ter-se deixado, do abraçar o outro sem esquece5r-se de si, do dedicar-se ao outro estando bem consigo, enfim, de não perder-se nas dúvidas e medos, mas fazer de seu caminhar um caminhar de certezas, ou melhor, ter sempre diante dos olhos a certeza.
É um tanto complicado falar de certeza num mundo onde a cada dia surgem novas “propagandas” , que nos tentam empurrar para dentro de um mar de dúvidas, que só encontram mais dúvidas como resposta. Um mundo, onde surge sempre algo diferente, às vezes aparentemente atraente, outras vezes, exageradamente repugnante; ofertas “promissoras”, onde tentam-se impor a “indústria do pecado”, onde encontra lugar a exploração do mais fraco, as ideologias políticas, a profanação do sentido sagrado da sexualidade, enfim, o “individualismo, o narcisismo, o sexismo, o etnocentrismo, e o consumismo da sociedade moderna, que contaminam a todos”4.; que tentam apagar de dentro de nós as certezas: certeza do apoio que há nos pés; certeza de ter tomado a decisão certa ao iniciar a caminhada; certeza de estar na hora certa para aquela pausa e aquele descanso; certeza de estar seguindo o caminho certo, a estrada determinada, a direção para uma chegada tranqüila; certeza de estar valendo a pena todo o esforço para este movimentar-se de passos; enfim, certeza de que caminhar coerentemente não é motivo para medos e decepções, mas para regozijos e realizações, para uma saída com a garantia da chegada.
1 Iório , Fernando ; Passos de Mariana , Paulus, São Paulo, 1998, pág. 17.
2 Idem, pág. 8 .
3 Idem, pág. 14.
4 Murad, Afonso e Maçaneiro, Marcial ; A ESPIRITUALIDADE COMO CAMINHO E MISTÉRIO, Loyola, São
Paulo, 1999, pág. 35.
Medito agora sobre a certeza que tem uma criança quando junto de seus pais. Ela não tem medo se o pai lhe garante proteção. A criança sabe confiar, não porque se apóia em hipóteses, mas porque, acima de tudo, coloca sua certeza na proteção de seus pais. Isso é tão certo, que se um menino, digamos que de quatro anos de idade, estiver em determinado lugar, e este lugar esteja, por exemplo, numa altura de dez metros, e seu pai ou sua mãe pedir para que ele pule, garantindo-lhe que vai segurá-lo, não há dúvida que ele o fará. Com certeza se lançará inteiramente para baixo, para os braços do pai ou da mãe, porque tem consigo a certeza de que um ou outro não o deixará cair. Mesmo que haja a possibilidade de cair, ele não pensa outra coisa senão que cairá, mas nos braços de seu pai, que lhe serve de âncora, de apoio, de ponto certo (referência), de certeza.
Tomando este modelo, podemos crer que “quanto mais mergulharmos em atitude de confiança, mais o coração se aquieta diante das preocupações da vida.”5
Estar ancorado significa estar firme, seguro, certo. Não significa, necessariamente, estar preso, como é o caso de um navio quando tem suas âncoras jogadas ao mar; mas significa sim, ter consciência da própria existência e fundamentar esta existência na certeza de que há vantagem em estar bem consigo, com os outros, etc. estar ancorado é saber manter firmes os passos e abertos os olhos na estrada; estar atentos às sinalizações; ter prudência diante de todas as situações encontradas no caminho; perceber os obstáculos e saber superá-los com fortaleza; não desviar o desejo de chegar ao ponto para o qual saiu, levando consigo a si mesmo.
Ser prudente é não caminhar no sentido contrário ao que tem direção certa. É saber ler nos acontecimentos, nas pessoas com suas ações, na história passada e no dia-a-dia aquilo que conduz ao crescimento, e abraçar fervorosamente, aplicando isto a si, e procurando avançar mais solidamente no caminho. Estar ancorado, repito, é ser prudente; não agir inconseqüentemente, mas ter calma, saber planejar, saber esperar, saber dar oportunidades para outros, enfim, ter a firmeza e a consciência de estar andando na direção certa.
E é muito importante, ainda, lembrar que nós mesmos não somos as únicas âncoras que nos seguram, que nos ajudam a dar sentido à vida, que caminham ensinando os passos a caminhar. Os outros também são âncoras, não somente para eles , mas também para nós. O homem não consegue caminhar sozinho. Ele não consegue viver fora de uma sociedade. Ele está sempre precisando dos outros, se ancorando nos outros, colhendo dos outros algo de que necessita para completar-se. um ser humano, sem dúvida, serve de âncora para o outro, seja através de uma ajuda material, de um apoio moral, de um incentivo profissional, de um consolo espiritual e um conselho de irmão, enfim, de um doar-se no trabalho para a edificação da pessoa. Nós podemos servir de âncoras uns para os outros quando nos comprometemos em sairmos em direção do próximo e em caminharmos com ele, dispostos a alegrarmo-nos com ele como também a partilharmos de seus momentos de tropeço, ajudando-o e deixando-nos ajudar, no posicionamento avante do caminho reto. Somos âncoras quando comunicamos sentimentos bons; quando deixamos fluir de dentro de nós desejos fortes de sentir no outro o amor, o carinho, a satisfação, a felicidade, a realização pessoal; e neste comunicarmos, deixarmos também, que o outro ria conosco, sofra conosco, corra e se emocione conosco.
Sem dúvida nenhuma, posso atestar, porque fiz a experiência, que além de mim mesmo, do meu próximo, que são âncoras fundamentais para o bom êxito deste dinamismo, que me impulsiona a enfrentar a vida, enfrentar a longa caminhada, estar atento passo a passo no enfrentamento da estrada diária da vida, e perseverar, apesar das dificuldades, neste movimento de saída de mim (comigo) ao encontro do outro, ao encontro de algo, existe uma Âncora Imutável, Indestrutível, 5 Idem, pág. 18.
Infalível, da qual dependem todas as outras âncoras. Na verdade, somente envolvido pela infinita consistência desta Âncora é possível contar com o apoio das outras, que dependem também da força oferecida gratuitamente pela primeira. Esta Âncora é o que na nossa linguagem chamamos Deus, mas que é acima de qualquer denominação, de qualquer título, de qualquer forma de expressão.
Portanto, só é possível estar bem consigo e com os outros, quando se está bem com Deus. Existirá forças nos pés, consistência nos passos, atenção na estrada, incentivo para vencer os obstáculos, a boa visão da direção certa, um ponto de chegada e um objetivo conquistado, se existir a “permissão” de nossa parte, para que tudo seja orientado por Deus.
Falei muito, mas é mais ou menos assim que procuro entender a dinâmica do ato de orar. Em poucas palavras, é o sair de mim, tendo consciência de minhas limitações e dependências, procurando interagir de forma responsável com o meu próximo ao encontro com Deus. Orar é ter em Deus o princípio (criação), o meio (caminhada) e o fim (referência) de minha existência. A verdadeira oração é aquela que é “intensa, mas que não afasta do compromisso na história: ao abrir o coração ao amor de Deus, abre-o também ao amor dos irmãos, tornando-nos capazes de construir a história segundo o desígnio de Deus.”6
6 João Paulo II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (6 de Janeiro de 2001).