Catecismo da Igreja Católica
PRIMEIRA PARTE
A PROFISSÃO DA FÉ
SEGUNDA SECÇÃO
A PROFISSÃO DA FÉ CRISTÃ
CAPÍTULO PRIMEIRO
CREIO EM DEUS PAI
198. A nossa profissão de fé começa
por Deus, porque Deus é «o Primeiro e o Último» (Is 44, 6), o
Princípio e o Fim de tudo. O Credo começa por Deus Pai, porque o Pai é a
Primeira Pessoa divina da Santíssima Trindade; o nosso Símbolo começa pela
criação do céu e da terra, porque a criação é o princípio e o fundamento de
todas as obras de Deus.
«CREIO EM DEUS PAI TODO-PODEROSO
CRIADOR DO CÉU E DA TERRA»
CREIO EM DEUS
199. «Creio em Deus»: é esta a
primeira afirmação da profissão de fé e também a mais fundamental. Todo o
Símbolo fala de Deus; ao falar também do homem e do mundo, fá-lo em relação a
Deus. Os artigos do Credo dependem todos do primeiro, do mesmo modo que todos
os mandamentos são uma explicitação do primeiro. Os outros artigos fazem-nos
conhecer melhor a Deus, tal como Ele progressivamente Se revelou aos homens.
«Os fiéis professam, antes de mais nada, crer em Deus»(1).
I. «Creio em um só Deus»
200. É com estas palavras
que começa o Símbolo Niceno-Constantinopolitano. A confissão da unicidade de
Deus, que radica na Revelação divina da Antiga Aliança, é inseparável da
confissão da existência de Deus e tão fundamental como ela. Deus é único; não
há senão um só Deus: «A fé cristã crê e professa que há um só Deus, por
natureza, por substância e por essência» (2).
201. A Israel, seu povo eleito, Deus
revelou-Se como sendo único: «Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único
Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma
e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5). Por meio
dos profetas, Deus faz apelo a Israel e a todas as nações para que se voltem
para Ele, o Único: «Voltai-vos para Mim, e sereis salvos, todos os confins da
terra, porque Eu sou Deus e não há outro [...] Diante de Mim se hão-de dobrar
todos os joelhos, em Meu nome hão-de jurar todas as línguas. E dirão: "Só
no Senhor existem a justiça e o poder"» (Is 45, 22-24) (3).
202. O próprio Jesus confirma que Deus
é «o único Senhor», e que é necessário amá-Lo «com todo o coração, com toda a
alma, com todo o entendimento e com todas as forças» (4). Ao mesmo tempo, dá a
entender que Ele próprio é «o Senhor» (5). Confessar que «Jesus é o Senhor» é
próprio da fé cristã. Isso não vai contra a fé num Deus Único. Do mesmo modo,
crer no Espírito Santo, «que é Senhor e dá a Vida», não introduz qualquer
espécie de divisão no Deus único:
«Nós acreditamos com firmeza e
afirmamos simplesmente que há um só Deus verdadeiro, imenso e imutável,
incompreensível, todo-poderoso e inefável. Pai e Filho e Espírito Santo: três
Pessoas, mas uma só essência, uma só substância ou natureza absolutamente
simples»(6).
II. Deus revela o seu nome
203. Deus revelou-Se ao seu povo
Israel, dando-lhe a conhecer o seu nome. O nome exprime a essência, a
identidade da pessoa e o sentido da sua vida. Deus tem um nome. Não é uma força
anónima. Dizer o seu nome é dar-Se a conhecer aos outros; é, de certo modo,
entregar-Se a Si próprio, tornando-Se acessível, capaz de ser conhecido mais
intimamente e de ser invocado pessoalmente.
204. Deus revelou-Se progressivamente
e sob diversos nomes ao seu povo; mas foi a revelação do nome divino feita a
Moisés na teofania da sarça ardente, no limiar do êxodo e da Aliança do Sinai,
que se impôs como sendo a revelação fundamental, tanto para a Antiga como para
a Nova Aliança.
O DEUS VIVO
205. Do meio duma sarça que arde sem
se consumir, Deus chama por Moisés. E diz-lhe: «Eu sou o Deus de teu pai, o
Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob» (Ex 3, 6). Deus
é o Deus dos antepassados, Aquele que tinha chamado e guiado os patriarcas nas
suas peregrinações. É o Deus fiel e compassivo, que se lembra deles e das
promessas que lhes fez. Ele vem para libertar da escravidão os seus
descendentes. É o Deus que, para além do espaço e do tempo, pode e quer
fazê-lo, e empenhará a Sua omnipotência na concretização deste desígnio.
«EU SOU AQUELE QUE SOU»
Moisés disse a Deus: «Vou então
procurar os filhos de Israel e dizer-lhes: " O Deus de vossos pais
enviou-me a vós". Mas se me perguntarem qual é o seu nome, que hei-de
responder-lhes? Deus disse a Moisés: «Eu sou Aquele que sou». E prosseguiu:
«Assim falarás aos filhos de Israel: Aquele que tem por nome "Eu sou"
é que me enviou a vós [...] ... Será este o meu nome para sempre, nome que
ficará de memória para todas as gerações» (Ex 3, 13-15).
206. Ao revelar o seu nome misterioso
de YHWH, «Eu sou Aquele que É», ou «Eu sou Aquele que Sou», ou ainda «Eu sou
quem Eu sou», Deus diz Quem é e com que nome deve ser chamado. Este nome divino
é misterioso, tal como Deus é mistério. E, ao mesmo tempo, um nome revelado e
como que a recusa dum nome. É assim que Deus exprime melhor o que Ele é,
infinitamente acima de tudo o que podemos compreender ou dizer: Ele é o «Deus
escondido» (Is 45, 15), o seu nome é inefável (7), e é o Deus que
Se faz próximo dos homens.
207. Ao revelar o seu
nome, Deus revela ao mesmo tempo a sua fidelidade, que é de sempre e para
sempre, válida tanto para o passado («Eu sou o Deus de teu pai» – Ex 3,
6), como para o futuro («Eu estarei contigo» – Ex 3, 12).
Deus, que revela o seu nome como sendo «Eu sou», revela-Se como o Deus que está
sempre presente junto do seu povo para o salvar.
208. Perante a presença atraente e
misteriosa de Deus, o homem descobre a sua pequenez. Diante da sarça ardente,
Moisés descalça as sandálias e cobre o rosto face à santidade divina (8). Ante
a glória do Deus três vezes santo, Isaías exclama: «Ai de mim, que estou
perdido, pois sou um homem de lábios impuros» (Is 6, 5). Perante os
sinais divinos realizados por Jesus. Pedro exclama: «Afasta-Te de mim, Senhor,
porque eu sou um pecador» (Lc 5, 8). Mas porque Deus é santo, pode
perdoar ao homem que se descobre pecador diante d'Ele: «Não deixarei arder a
minha indignação [...]. É que Eu sou Deus, e não homem, o Santo que está no
meio de vós» (Os 11, 9). E o apóstolo João dirá também:
«Tranquilizaremos diante d'Ele, o nosso coração, se o nosso coração vier a
acusar-nos. Pois Deus é maior do que o nosso coração e conhece todas as coisas»
(1 Jo 3, 19-20).
209. Por respeito pela santidade de
Deus, o povo de Israel não pronuncia o seu nome. Na leitura da Sagrada
Escritura, o nome revelado é substituído pelo título divino de «Senhor»
(«Adonai», em grego «Kyrios»). É sob este título que será aclamada a divindade
de Jesus: «Jesus é o Senhor».
«DEUS DE TERNURA E DE PIEDADE»
210. Depois do pecado de Israel, que
se afastou de Deus para adorar o bezerro de ouro (9), Deus atende a intercessão
de Moisés e aceita caminhar no meio dum povo infiel, manifestando deste modo o
seu amor (10). A Moisés, que Lhe pede a graça de ver a sua glória. Deus
responde: «Farei passar diante de ti toda a minha bondade (beleza) e
proclamarei diante de ti o nome de YHWH» (Ex 33, 18-19). E o Senhor
passa diante de Moisés e proclama: «O Senhor, o Senhor [YHWH, YHWH] é um Deus
clemente e compassivo, sem pressa para se indignar e cheio de misericórdia e
fidelidade» (Ex 34, 6). Moisés confessa, então, que o Senhor é um
Deus de perdão» (11).
211. O nome divino «Eu sou» ou «Ele é»
exprime a fidelidade de Deus, que, apesar da infidelidade do pecado dos homens
e do castigo que merece, «conserva a sua benevolência em favor de milhares de
pessoas» (Ex 34, 7). Deus revela que é «rico de misericórdia» (Ef
2, 4),ao ponto de entregar o seu próprio Filho. Dando a vida para nos
libertar do pecado, Jesus revelará que Ele mesmo é portador do nome divino:
«Quando elevardes o Filho do Homem, então sabereis que Eu sou» (Jo 8,
28).
SÓ DEUS É
212. No decorrer dos
séculos, a fé de Israel pôde desenvolver e aprofundar as riquezas contidas na
revelação do nome divino. Deus é único, fora d'Ele não há deuses (12). Ele
transcende o mundo e a história. Foi Ele que fez o céu e a terra; «eles hão-de
passar, mas Vós permaneceis; tal como um vestido, eles se vão gastando [...]
Vós, porém, sois sempre o mesmo e os vossos anos não têm fim» (Sl 102,
27-28). N'Ele «não há variação nem sombra de mudança» (Tg 1, 17).
Ele é «Aquele que é», desde sempre e para sempre; e assim, permanece sempre
fiel a Si mesmo e às suas promessas.
213. A revelação do nome inefável «Eu
sou Aquele que sou» encerra, portanto, a verdade que só Deus «É». Foi nesse
sentido que já a tradução dos Setenta e, na sua sequência, a Tradição da Igreja.
compreenderam o nome divino: Deus é a plenitude do Ser e de toda a perfeição,
sem princípio nem fim. Enquanto todas as criaturas d'Ele receberam todo o ser e
o ter, só Ele é o seu próprio Ser, e Ele é por Si mesmo tudo o que Ele é.
III. Deus, «Aquele que é», é verdade e
amor
214. Deus, «Aquele que É»,
revelou-Se a Israel como Aquele que é «cheio de misericórdia e fidelidade» (Ex 34,
6). Estas duas palavras exprimem, de modo sintético, as riquezas do nome
divino. Em todas as suas obras, Deus mostra a sua benevolência, a sua bondade,
a sua graça, o seu amor; mas também a sua credibilidade, a sua constância, a
sua fidelidade, a sua verdade. «Hei-de louvar o vosso nome pela vossa bondade e
fidelidade» (Sl 138, 2) (13). Ele é a verdade, porque «Deus é luz,
e n'Ele não há trevas nenhumas» (1 Jo 1, 5); Ele é «Amor»,
como ensina o apóstolo João (1 Jo 4, 8).
DEUS É A VERDADE
215. «A verdade é
princípio da vossa palavra, é eterna toda a sentença da vossa justiça» (Sl119,
160). «Decerto, Senhor Deus, Vós é que sois Deus e dizeis palavras de verdade» (2
Sm 7,28); é por isso que as promessas de Deus se cumprem sempre (14). Deus
é a própria verdade; as suas palavras não podem enganar. É por isso que nos
podemos entregar com toda a confiança e em todas as coisas à verdade e à
fidelidade da sua palavra. O princípio do pecado e da queda do homem foi uma
mentira do tentador, que o levou a duvidar da palavra de Deus, da sua
benevolência e da sua fidelidade.
216. A verdade de Deus é a sua
sabedoria, que comanda toda a ordem da criação e governo do mundo (15). Só Deus
que, sozinho, criou o céu e a terra (16) pode dar o conhecimento verdadeiro de
todas as coisas criadas na sua relação com Ele (17).
217. Deus é igualmente verdadeiro
quando Se revela: todo o ensinamento que vem de Deus é «doutrina de verdade» (Ml 2,
6). Quando Ele enviar o seu Filho ao mundo, será «para dar
testemunho da verdade» (Jo 18, 37): «Sabemos [...] que veio o
Filho de Deus e nos deu entendimento para conhecermos o Verdadeiro» (1
Jo 5, 20) (18).
DEUS É AMOR
218. No decorrer da sua
história, Israel pôde descobrir que Deus só tinha uma razão para Se lhe ter
revelado e o ter escolhido, de entre todos os povos, para ser o seu povo: o seu
amor gratuito (19). E Israel compreendeu, graças aos seus profetas, que foi também
por amor que Deus não deixou de o salvar (20) e de lhe perdoar a sua
infidelidade e os seus pecados (21).
219. O amor de Deus para com Israel é
comparado ao amor dum pai para com o seu filho(22). Este amor é mais forte que
o de uma mãe para com os seus filhos (23). Deus ama o seu povo, mais que um
esposo a sua bem-amada (24); este amor vencerá mesmo as piores infidelidades
(25); e chegará ao mais precioso de todos os dons: «Deus amou de tal maneira o
mundo, que lhe entregou o seu Filho Único» (Jo 3, 16).
220. O amor de Deus é «eterno» (Is 54,
8): «Ainda que as montanhas se desloquem e vacilem as colinas, o meu amor não
te abandonará» (Is 54, 10). «Amei-te com amor eterno: por isso,
guardei o meu favor para contigo» (Jr 31, 3).
221. São João irá ainda mais longe, ao
afirmar: «Deus é Amor» (1 Jo 4, 8, 16): a própria essência de
Deus é Amor. Ao enviar, na plenitude dos tempos, o seu Filho único e o Espírito
de Amor, Deus revela o seu segredo mais íntimo ": Ele próprio é
eternamente permuta de amor: Pai, Filho e Espírito Santo; e destinou-nos a
tomar parte nessa comunhão.
IV. Consequências da fé no Deus Único
222. Crer em Deus, o Único, e amá-Lo
com todo o nosso ser, tem consequências imensas para toda a nossa vida:
223. É conhecer a grandeza e a
majestade de Deus: «Deus é grande demais para que O possamos conhecer» (Job 36,
26). É por isso que Deus deve ser «o primeiro a ser servido» (27).
224. É viver em acção de
graças: Se Deus é o Único, tudo o que nós somos e tudo quanto possuímos vem
d'Ele: «Que possuis que não tenhas recebido?» (1 Cor 4, 7).
«Como agradecerei ao Senhor tudo quanto Ele me deu?» (Sl 116,
12).
225. É conhecer a unidade e a
verdadeira dignidade de todos os homens: todos eles foram feitos «à
imagem e semelhança de Deus» (Gn 1, 26).
226. É fazer bom uso das coisas
criadas: A fé no Deus único leva-nos a usar de tudo quanto não for
Ele, na medida em que nos aproximar d'Ele, e a desprender-nos de tudo, na
medida em que d'Ele nos afastar (28):
«Meu Senhor e meu Deus, tira-me tudo o
que me afasta de Ti.
Meu Senhor e meu Deus, dá-me tudo o que me aproxima de Ti.
Meu Senhor e meu Deus, desapega-me de mim mesmo, para que eu me dê todo a
Ti» (29).
227. É ter confiança em
Deus, em todas as circunstâncias, mesmo na adversidade. Uma oração de
Santa Teresa de Jesus exprime admiravelmente tal atitude:
«Nada te perturbe / Nada te espante
Tudo passa / Deus não muda
A paciência tudo alcança / Quem a Deus tem
nada lhe falta / Só Deus basta» (30).
Resumindo:
228. «Escuta, Israel! O Senhor; nosso
Deus, é o único Senhor...» (Dt 6, 4; Mc 12, 29). «O ser supremo tem
necessariamente de ser único, isto é, sem igual. [...] Se Deus não for único,
não é Deus» (31).
229. A fé em Deus
leva-nos a voltarmo-nos só para Ele, como a nossa primeira origem e o nosso
último fim, e a nada Lhe preferir ou por nada O substituir:
230. Deus, ao
revelar-Se, continua mistério inefável: «Se O compreendesses, não seria Deus»(32).
231. O Deus da nossa
fé revelou-Se como Aquele que é: deu-Se a conhecer como «cheio
de misericórdia e fidelidade» (Ex 34, 6). O seu próprio Ser é verdade e amor.
O PAI
I. «Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»
232. Os cristãos são baptizados «em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28, 19). Antes
disso, eles respondem «Creio» à tríplice pergunta com que são interpelados a
confessar a sua fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo: «Fides omnium
christianorum in Trinitate consistit – A fé de todos os cristãos
assenta na Trindade») (33).
233. Os cristãos são baptizados «em
nome» do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e não «nos nomes» deles porque não
há senão um só Deus – o Pai Omnipotente, o Seu Filho Unigénito e o Espírito
Santo: a Santíssima Trindade.
234. O mistério da
Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. É o mistério
de Deus em si mesmo. E, portanto, a fonte de todos os outros mistérios da fé e
a luz que os ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na
«hierarquia das verdades da fé» (35). «Toda a história da salvação não é senão
a história do caminho e dos meios pelos quais o Deus verdadeiro e único, Pai,
Filho e Espírito Santo, Se revela, reconcilia consigo e Se une aos homens que
se afastam do pecado»(36).
235. Neste parágrafo se
exporá brevemente de que maneira foi revelado o mistério da Santíssima Trindade
(I), como é que a Igreja formulou a doutrina da fé sobre este mistério (II) e,
por fim, como é que, pelas missões divinas do Filho e do Espírito Santo, Deus
Pai realiza o seu «desígnio de benevolência» de criação, redenção e
santificação (III).
236. Os Padres da Igreja distinguem
entre «Theologia» e «Oikonomia», designando pelo primeiro termo o mistério da
vida íntima de Deus-Trindade e, pelo segundo, todas as obras de Deus pelas
quais Ele Se revela e comunica a sua vida. É pela «Oikonomia» que nos é
revelada a «Theologia»; mas, inversamente, é a «Theologia» que esclarece toda a
«Oikonomia». As obras de Deus revelam quem Ele é em Si mesmo: e, inversamente,
o mistério do seu Ser íntimo ilumina o entendimento de todas as suas obras.
Analogicamente, é o que se passa com as pessoas humanas. A pessoa revela-se no
que faz, e, quanto mais conhecemos uma pessoa, tanto melhor compreendemos o seu
agir.
237. A Trindade é um
mistério de fé em sentido estrito, um dos «mistérios ocultos em Deus, que não
podem ser conhecidos se não forem revelados lá do alto» (37) É verdade que Deus
deixou traços do seu Ser trinitário na obra da criação e na sua revelação ao
longo do Antigo Testamento. Mas a intimidade do seu Ser como Trindade
Santíssima constitui um mistério inacessível à razão sozinha e, mesmo, à fé de
Israel antes da Encarnação do Filho de Deus e da missão do Espírito Santo.
II. A revelação de Deus como Trindade
O PAI REVELADO PELO FILHO
238. A invocação de Deus como «Pai» é
conhecida em muitas religiões. A divindade é muitas vezes considerada como «pai
dos deuses e dos homens». Em Israel, Deus é chamado Pai enquanto criador do
mundo (38). Mais ainda, Deus é Pai em razão da Aliança e do dom da Lei a
Israel, seu «filho primogénito» (Ex 4, 22). Também é chamado Pai do
rei de Israel (39). E é muito especialmente «o Pai dos pobres», do órfão
e da viúva, entregues à sua protecção amorosa (40).
239. Ao designar Deus com o nome de
«Pai», a linguagem da fé indica principalmente dois aspectos: que Deus é a
origem primeira de tudo e a autoridade transcendente, e, ao mesmo tempo, que é
bondade e solicitude amorosa para com todos os seus filhos. Esta ternura
paternal de Deus também pode ser expressa pela imagem da maternidade (41), que
indica melhor a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura A
linguagem da fé vai, assim, alimentar-se na experiência humana dos
progenitores, que são, de certo modo, os primeiros representantes de Deus para
o homem. Mas esta experiência diz também que os progenitores humanos são
falíveis e podem desfigurar a face da paternidade e da maternidade. Convém,
então, lembrar que Deus transcende a distinção humana dos sexos. Não é homem nem
mulher: é Deus. Transcende também a paternidade e a maternidade humanas (42),
sem deixar de ser de ambas a origem e a medida (43): ninguém é pai como Deus.
240. Jesus revelou que Deus é «Pai»
num sentido inédito: não o é somente enquanto Criador: é Pai eternamente em
relação ao seu Filho único, o qual, eternamente, só é Filho em relação ao Pai:
«Ninguém conhece o Filho senão o Pai, nem ninguém conhece o Pai senão o Filho,
e aquele a quem o Filho o quiser revelar» (Mt 11, 27).
241. É por isso que os Apóstolos
confessam que Jesus é «o Verbo [que] estava [no princípio] junto de Deus» e que
é Deus (Jo 1, 1), «a imagem do Deus invisível» (Cl 1,
15), «o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância» (Heb 1,
3).
242. Na esteira deles, seguindo a
tradição apostólica, no primeiro concílio ecuménico de Niceia, em 325, a Igreja
confessou que o Filho é «consubstancial» ao Pai (44), quer dizer, um só Deus
com Ele. O segundo concilio ecuménico, reunido em Constantinopla em 381,
guardou esta expressão na sua formulação do Credo de Niceia e confessou «o
Filho unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, luz da luz.
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai»
(45).
O PAI E O FILHO REVELADOS PELO ESPÍRITO
243. Antes da sua Páscoa, Jesus
anuncia o envio de um «outro Paráclito»(Defensor), o Espírito Santo. Agindo
desde a criação (46) e tendo outrora «falado pelos profetas» (47), o Espírito
Santo estará agora junto dos discípulos, e neles (48), para os ensinar (49) e os
guiar «para a verdade total» (Jo 16, 13). E, assim, o Espírito
Santo é revelado como uma outra pessoa divina, em relação a Jesus e ao Pai.
244. A origem eterna do Espírito
revela-se na sua missão temporal. O Espírito Santo é enviado aos Apóstolos e à
Igreja, tanto pelo Pai, em nome do Filho, como pessoalmente pelo Filho, depois
do seu regresso ao Pai (50). O envio da pessoa do Espírito, após a glorificação
de Jesus (51) revela em plenitude o mistério da Santíssima Trindade.
245. A fé apostólica relativamente ao
Espírito foi confessada pelo segundo concilio ecuménico, reunido em
Constantinopla em 381:«Nós acreditamos no Espírito Santo, Senhor que dá a vida,
e procede do Pai» (52). A Igreja reconhece assim o Pai como «a fonte e a origem
de toda a Divindade» (53). Mas a origem eterna do Espírito Santo não está
desligada da do Filho: «O Espírito Santo, que é a terceira pessoa da Trindade,
é Deus, uno e igual ao Pai e ao Filho, da mesma substância e também da mesma
natureza... Contudo, não dizemos que Ele é somente o Espírito do Pai, mas, ao
mesmo tempo, o Espírito do Pai e do Filho»(54). O Credo do Concílio de
Constantinopla da Igreja confessa que Ele, «com o Pai e o Filho, é adorado e
glorificado» (55).
246. A tradição latina do
Credo confessa que o Espírito «procede do Pai e do Filho(Filioque)».
O Concílio de Florença, em 1438, explicita: «O Espírito Santo [...] recebe a
sua essência e o seu ser ao mesmo tempo do Pai e do Filho, e procede
eternamente de um e do outro como dum só Princípio e por uma só espiração [...]
E porque tudo o que é do Pai, o próprio Pai o deu ao seu Filho Unigénito,
gerando-O, com excepção do seu ser Pai, esta mesma procedência do Espírito
Santo, a partir do Filho, Ele a tem eternamente do seu Pai, que eternamente O
gerou» (56).
247. A afirmação do Filioque não
figurava no Símbolo de Constantinopla de 381. Mas, com base numa antiga
tradição latina e alexandrina, o Papa São Leão já a tinha confessado
dogmaticamente em 447 (57), mesmo antes de Roma ter conhecido e recebido o
Símbolo de 381 no Concílio de Calcedónia, em 451). O uso desta fórmula no Credo
foi sendo, pouco a pouco, admitido na liturgia latina (entre os séculos VIII e
XI). A introdução do Filioque no Símbolo
Niceno-Constantinopolitano pela liturgia latina constitui, ainda hoje, no
entanto, um diferendo com as igrejas ortodoxas.
248. A tradição oriental exprime,
antes de mais, o carácter de origem primeira do Pai em relação ao Espírito. Ao
confessar o Espírito como «saído do Pai» (Jo 15, 26), afirma
que Eleprocede do Pai pelo Filho (58). A tradição
ocidental exprime, sobretudo, a comunhão consubstancial entre o Pai e o Filho,
ao dizer que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho(Filioque). E
di-lo «de maneira legítima e razoável» (59), «porque a ordem eterna das pessoas
divinas na sua comunhão consubstancial implica que o Pai seja a origem primeira
do Espírito, enquanto «princípio sem princípio» (60), mas também que, enquanto
Pai do Filho Único, seja com Ele «o princípio único de que
procede o Espírito Santo» (61). Esta legítima complementaridade, se não for
exagerada, não afecta a identidade da fé na realidade do mesmo mistério
confessado.