Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger
Um café a mais
- SEGUNDA, 06 JULHO 2015 17:32
- CNBB
Dom Murilo S.R. KriegerArcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil
Aeroporto de Salvador.
Como saber o número de xícaras de cafés que ela havia servido, até atender o freguês que estava à sua frente? Trinta e duas? Oitenta e quatro? Cem? O que importava? A resposta não mudaria sua obrigação de servir cada freguês como se fosse o único. O homem que se encontrava à sua frente demonstrava ter pressa. Dissera-lhe apenas: “Um café”. Só isso. Nada mais lhe falara. Também os que o antecederam lhe tinham feito o mesmo pedido, com as mesmas palavras. Na verdade, falar o quê a mais? Será que algum deles havia notado a sua presença ali? Daqui a pouco, todos estariam longe, em alguma outra parte do país. Ela, por sua vez, continuaria no mesmo lugar, servindo mais um café, e outro, e outro...
No fim do dia, percebia que não tinha mais a mesma disposição. Fazia tudo meio automaticamente. Mais um comprovante de caixa foi colocado no balcão. O homem de gravata era como os demais: ar preocupado (por que será que todo mundo está sempre preocupado e apressado?), inquieto, olhar nervoso. Quantas vezes, só naquele dia, ela fizera os mesmos gestos e tinha dito as mesmas palavras? Pegar uma xícara com pires, levar até à máquina, por os grãos para serem moídos na hora, esperar a saída do café, colocá-lo diante do freguês e perguntar: “Açúcar ou adoçante?”.
Um café a mais. Logo em seguida haveria outros. Ela se sentia uma máquina. Só que, se fosse máquina, não estaria tão cansada. "Quem diz que a gente se acostuma neste trabalho nunca ficou oito horas em pé, dia após dia, mês após mês, fazendo sempre a mesma coisa! Robô, sim, é que se acostuma. Aliás, essa máquina nem precisa se acostumar. Já começa fazendo sempre do mesmo jeito. E nunca muda." Nossa! Ela quase derrama um pouco de café da xícara! Dá nisso, quando ela resolve pensar enquanto trabalha.
Um corte e um retorno no tempo.
Década de trinta do primeiro século. A recomendação que os apóstolos tinham recebido era simples: mandar que todos se sentassem, tomar os pães das mãos de Jesus e distribuí-los para a multidão faminta que os cercava. O mesmo gesto se repetia centenas de vezes. Cada vez os apóstolos sentiam renovada alegria ao repeti-lo: tinham consciência de estar participando de um ato criador. Valeu a pena ter deixado redes, peixes e conversas ao redor de barcas, para seguir o Mestre. O que viam e ouviam era mais do que suficiente para os empolgar. Mas não podiam parar para pensar. Ainda havia muita gente querendo se alimentar. Desde que os pães e peixes foram abençoados, era surpresa sobre surpresa. Não importava a quantidade do que davam a cada pessoa: suas próprias mãos não se esvaziavam. Longe de se cansarem na repetição dos mesmos gestos, experimentavam cada vez uma nova emoção...
Voltemos ao aeroporto de Salvador.
Meia noite. Os passageiros são poucos. Não há mais café a servir. Amanhã ela voltará ao seu trabalho. Haverá novos fregueses e outros pedidos sobre o balcão. Ela pegará uma xícara com pires, levará até à máquina, porá o grão para moer, esperará a saída do café, colocará a xícara diante do freguês e perguntará: “Açúcar ou adoçante?”.
Como era mesmo aquela história que ela ouviu um dia? Uma multidão se sentara no chão e os apóstolos de Jesus começaram a andar no meio dela, repetindo centenas de vezes os mesmos gestos. Curioso aquele Mestre que passara em seus caminhos: ele gostava de necessitar dos outros e de lhes pedir que o ajudassem. Os apóstolos, então, começaram a ir no meio do povo e estendiam suas mãos na direção dos que estavam sentados, dando-lhes pão e peixe. Quantas vezes? Trinta e duas? Oitenta e quatro? Cem? O que importa?
Ela estava cansada. Precisava ir embora.
http://www.cnbb.org.br/outros/dom-murilo-sebastiao-ramos-krieger/16842-um-cafe-a-mais