Esse relato, como outros já vistos, não pode ser tomado ao pé da letra como se fosse narração histórica no sentido moderno do termo, isto é, a documentação de um fato, aferível, comprovável. É histórico, sim, por tratar de drama humano, real: o crime, a vingança e o castigo. Esse drama nós o sentimos e o percebemos presente na História. O texto bíblico é narração popular, etiológico-teológica sobre a presença do mal social no mundo. O mal não existe apenas a nível pessoal, mas também a nível de convivência social. Se os homens são filhos de Deus e irmãos entre si, como se explicam o crime e a vingança?
A Bíblia relata então "como começou a violência no mundo"; procura dar a "causa" da violência. Esse tipo de narração é chamado "etiológico" (= dar a causa). Em seguida a Bíblia critica e condena a violência: Deus não a quer, pois ela está fora de seu projeto. Essa conclusão é o aspecto teológico da narração.
Essas reflexões do autor, nascidas de sua pesquisa, de sua fé e de sua experiência, são agrupadas numa história especial com a qual ele "explica" a origem e o desenvolvimento do mal na vida social, bem como a origem da violência e da vingança no mundo.
Além disso, como pano de fundo, o autor desse relato quer dar outra explicação "histórica" para os seus leitores: por que a tribo dos quenitas (ou cainitas, descendentes de Caim) era tribo nômade e feroz. Ele dirá então o que julga: a tribo dos quenitas, ou cainitas, vivia errante, diz ele pelo texto, porque ela tem por fundador um fratricida; ela nasceu de crime entre irmãos; Caim, o fundador da tribo, matara seu próprio irmão Abel. Por isso ele passou a viver errante (em hebraico: nad). A Bíblia lembra esse aspecto dizendo que Caim foi morar na "terra de Nod" (Gn 4,16). As palavras nad (= errante, em hebraico) e Nod (a cidade) formam um jogo de palavras significativo: cidade errante ou grupo errante.
Percebe-se que a finalidade desse texto é a de constatar a existência da violência no mundo, mostrar que Deus a desaprova e explicar por que a tribo dos quenitas (descendentes de Caim) era tribo errante e feroz.
Voltando ao texto: o autor quer denunciar ainda a violência que gera sempre violência e a vingança que gera sempre vingança na convivência social. Quer ensinar que é preciso parar com a violência, pôr ponto final nas mútuas agressões.
As palavras que Caim dirige a Deus demonstram essa cadeia de violência: o assassino tem sempre medo de ser assassinado (vv. 13- 14). A resposta de Deus confirma que, de fato, a vingança levará à vingança e a violência se tornará uma bola de neve crescente sempre mais, à medida que rola. Se Caim, assassino, for assassinado, seu clã e seu grupo se vingarão. Haverá recrudescimento da violência: "sete vezes sofrerá violência" - na linguagem bíblica, aqui, significa maior violência ou grande violência.
O "sinal" que Deus põe em Caim é símbolo que o autor usa para dizer que Deus não quer a violência, condena-a. Cada tribo ou cada clã tinha o seu sinal específico. O sinal específico que Deus põe em Caim indica sua pertença a uma tribo feroz e vingativa; esse sinal desestimulava as pessoas de outras tribos a tentarem vingar-se de Caim ou dos quenitas. O sinal era, pois, da parte de Deus, um dique à violência e não marca infamante. O autor diz: "Olha, Deus mandou parar com a violência; Deus não aceita a violência; é preciso pôr fim nisso". É esse o sentido do "sinal de Caim".
Nesse texto a Bíblia denuncia então: a existência da violência no mundo e o extremado senso de vingança existente nas pessoas; constata que existem muitos "Cains" na sociedade: são as pessoas de ontem e de hoje que violentam, agridem, matam o irmão. Denuncia o texto que a vingança chama vingança e que isso tudo não está conforme à vontade de Deus; Deus exige o fim desse estado de coisas e quer os homens felizes, amigos, vivendo em paz e em fraternidade. Nessa ótica o texto em questão tem sentido e é questionador.
Texto extraído do livro: Bíblia: Perguntas que o povo faz – Frei Mauro Strabeli – Paulus.
Pe. Raimundo Aristide da Silva
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