Cardeal Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
No dia 8 de dezembro passado, a Igreja Católica lembrou o 50º aniversário de conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II. Para marcar o fato, o papa Francisco abriu solenemente no mesmo dia o Ano Santo extraordinário da Misericórdia, anunciado no dia 11 de abril de 2015 com a bula pontifícia Misericordiae Vultus (“O Rosto da Misericórdia...”).
Os Anos Santos têm sua inspiração numa tradição bíblica, que foi adequada pelo Cristianismo para promover tempos de especial alegria e gratidão a Deus pelos dons recebidos e para voltar-se a Deus de todo coração. São, portanto, tempos fortes na vida da Igreja e para o exercício de sua missão. Anos Santos são celebrados pela Igreja a cada 25 anos; fora dessa sequência, eles são chamados Jubileus extraordinários.
O papa Francisco vinha falando da misericórdia de Deus desde o início de seu pontificado: “Deus é misericordioso e não se cansa de perdoar; nós é que nos cansamos de procurar seu perdão”, recordou ele em diversas ocasiões. Explicou também que seu lema episcopal, miserando atque eligendo (“tendo misericórdia dele, também o escolheu”), faz referência à sua própria experiência da misericórdia de Deus. Várias vezes já convidou os povos e seus governantes a superarem a indiferença e a insensibilidade diante dos sofrimentos do próximo.
O Jubileu é proposto como um “tempo favorável” para essa renovação interior. Francisco já deu a entender que a necessária reforma da Igreja não decorre de maneira automática da alteração de estruturas formais e burocráticas, mas de mudanças de atitudes. Agora, através da mensagem e das iniciativas do Jubileu da Misericórdia, ele convida a Igreja inteira a renovar-se a partir daquilo que é a sua essência: ela é, acima de tudo, obra da graça e da misericórdia de Deus e não, de convenções e decisões humanas: ”Deus nos amou primeiro, dando-nos a vida em Cristo Jesus; Deus é rico em misericórdia” (cf Ef.2,4s)”, ensinou São Paulo.
Uma das principais metas deste Ano Santo extraordinário deverá ser a busca da reconciliação com Deus e com o próximo; esta é uma condição para se ter verdadeira paz: “em nome de Cristo rogamos: reconciliai-vos com Deus!” (cf 2Cor.5,20). Não apenas os cristãos precisam de reconciliação e perdão: é a humanidade inteira que precisa de misericórdia e de paz. A justiça deverá ser sempre respeitada e promovida. No entanto, a estrita justiça, por si só, não é capaz de curar as feridas, de placar os ódios e a sede de vingança, geradora de mais conflitos e violência. A misericórdia não dispensa a justiça, mas vai além dela, com grandeza e ternura ao mesmo tempo. Na concepção bíblico-cristã, a misericórdia é parte da essência de Deus e precisa também integrar os comportamentos e atitudes de quem crê em Deus.
Além de ser acolhida, a misericórdia também precisa ser praticada: “sede misericordiosos, como vosso Pai celeste é misericordioso” (Lc.6,36), recomendou Jesus. E a Igreja de Cristo ensina a praticar obras de misericórdia corporais e espirituais, para que a vida cristã não se reduza a algumas manifestações rituais, pregações moralistas ou até a posturas ideológicas discriminatórias. As obras de misericórdia recomendas pela Igreja são ações concretas, orientadas para pessoas reais, em situações reais: dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir quem está sem roupa, visitar e assistir a quem está doente ou na prisão, abrigar quem está sem casa, confortar a quem vive na aflição, na dor, no luto... Nas palavras de Jesus, a prática dessas ações, ou a falta delas, será decisiva na derradeira prestação de contas que o homem deve fazer de sua vida a Deus: “todas as vezes que o fizestes, ou deixastes de fazer, foi a mim que o fizestes, ou deixastes de fazer” (cf Mt 25).
Durante o Jubileu da Misericórdia, acontecerão diversas iniciativas, já tradicionais nos Anos Santos, como a passagem pela Porta Santa e as peregrinações a “lugares santos”. As peregrinações são práticas religiosas universais, presentes em quase todas as religiões; por meio delas, o homem manifesta a sua busca interior de sentido e objetivo na vida. No sentido cristão, não temos neste mundo pátria definitiva mas, como peregrinos, estamos à procura daquela que Deus prepara para o homem. Somos eternos caminheiros, impelidos por alguma saudade misteriosa, que não se aplaca senão quando se alcança a grande meta da existência, que é o encontro com Deus, misericordioso senhor da vida.
O Papa deseja que o Ano Santo não seja celebrado apenas em Roma ou na Terra Santa, lugares caros aos peregrinos cristãos, mas em todas as partes do mundo. Por isso, as catedrais de todas as dioceses, além de outras igrejas importantes, terão a “Porta Santa da Misericórdia”, por onde os peregrinos poderão entrar, com o desejo de acolher as graças especiais do Ano Santo. A porta é ligada a muitos simbolismos e, neste caso, ela é imagem para Jesus Cristo, reconhecido como Salvador e porta de acesso a Deus.
Nosso mundo está marcado por uma série de males, que impedem o bem, a justiça e a paz almejada por todos. Ódios e sede de vingança levam a mais guerras e violência; ideologias fechadas, fundamentalismos cegos e fanatismos enrijecidos desencadeiam violências absurdas; egoísmos extremados levam pessoas e povos a se fecharem diante da miséria e da dor do próximo; a dignidade e até a vida de pessoas e de povos inteiros é sacrificada para satisfazer vaidades e a sede de poder e dinheiro.
A misericórdia acolhida e praticada poderá contribuir para a renovação das relações humanas e a paz. Somos todos necessitados de misericórdia; todos somos chamados a exercer a misericórdia, que revela a verdadeira grandeza e dignidade do homem, bem mais que o poder de coerção e destruição. A misericórdia salvará o mundo.
Publicado em O Estado de S. Paulo, no dia 12 de dezembro de 2015
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