É hora de redescobrir o verdadeiro
rosto de Maria de Nazaré e ser, a
exemplo dela, capaz de gerar no
mundo a salvação, pela
misericórdia, justiça, partilha e
pelo respeito à vida.
São 6 horas da tarde. Apesar da agitação da cidade e da música
barulhenta, comum na maioria das emissoras, algumas rádios em diferentes
lugares do País ainda tocam a tradicional Ave-maria. Há uma mistura de
sentimentos que atravessam os corações dos ouvintes. A maioria deles
provavelmente nada tem a ver com a vida de Maria.
É como se essa música ao entardecer despertasse em nós uma misteriosa saudade
súbita que brota do mais fundo de nós mesmos, misturada a lembranças vagas e
imprecisas; recordações que passam rápido de um evento a outro. São lembranças
de paz, de ternura, de compreensão, que afloram talvez com a saudade da Maria
de nossa infância e de nossa vida, que chamamos de Nossa Senhora, vestida de
branco, com manto azul, carregando um menino nos braços e trazendo com ele
nossos sonhos, segredos e esperanças.
O momento da música é passageiro - apenas alguns minutos de pausa
benfazeja, que nos introduzem numa espécie de parênteses cheio de sentido, até
voltarmos novamente à atividade cotidiana.
Podemos prolongar o momento bom da música de outro jeito, refletindo
sobre aspectos que são além de nossos sentimentos, das diferentes imagens de
Nossa Senhora e dos vários nomes que recebeu ao longo da tradição da Igreja.
Convido os leitores a tentar encontrar o rosto de Maria, a Maria de Nazaré,
aquela que está na base de nossas devoções e de nossa fé. Isso não significa
que conseguiremos retraçar sua vida histórica com fidelidade. A poeira dos
séculos torna esta tarefa quase impossível. O que conseguimos é apenas situá-la
como pessoa, como mulher de carne e osso como nós. E isso já é muito.
Aproximar-se de Maria como pessoa é devolver-lhe seu rosto humano, suas
possibilidades e qualidades humanas, sua realidade histórica e, ao mesmo tempo,
é como se nós também nos humanizássemos mais e nos tornássemos mais responsáveis
uns pêlos outros.
As pessoas que têm filhos se alegram quando estes chegam à maturidade e
se tornam capazes de se responsabilizar por sua vida e pela vida dos irmãos.
Tornam-se então adultos, capazes de amar, de buscar caminhos de justiça e
misericórdia. Sabemos que toda dependência excessiva diminui a pessoa humana.
Se alguém espera tudo de alguém, há algo que não está muito bem nessa relação.
A atitude de quem joga sempre a responsabilidade de seus atos sobre os outros
denota um significativo grau de imaturidade.
O mesmo acontece com nossa relação com Maria, quando não descobrimos o
seu rosto humano. Apesar dos ensinamentos que a distanciaram de nós, ela foi e
é pessoa. Não podemos fazer dela uma deusa toda poderosa distante da vida
cotidiana, uma deusa cuja imagem é facilmente manipulável pêlos poderosos deste
mundo.
Sabemos que houve chefes de Estado, inclusive na América Latina, que nomearam
Nossa Senhora como comandante de seus exércitos, os quais serviram para
reprimir e tirar a vida de muita gente. Evidentemente essa Nossa Senhora
comandante de exército não é a Maria de Nazaré, uma mulher que abraçou os
ideais de liberdade de seu povo - ideais de partilha e misericórdia que São
Lucas exprime tão bem no magnificat (Lc 1,46 a 55).
Ávida nos desafia a contemplar o verdadeiro rosto de Maria de Nazaré, anterior
a todas as histórias de aparições de Nossa Senhora. As aparições devem ser
situadas na tradição religiosa de um povo, sempre envoltas de muita
complexidade. A atitude de respeito é a mais indicada no que se refere à
diversidade dessas aparições. Não podemos parar nas discussões sobre sua
veracidade ou não, mas ir em busca do verdadeiro rosto de Maria, que os
Evangelhos e a memória histórica podem nos ajudar a recuperar.
Contemplar o rosto primitivo de Maria nos faz amá-la de outro jeito,
isto é, através do amor aos irmãos. Ela passa a ser para nós símbolo do amor
que temos uns pêlos outros capaz de gerar relações mais fraternas entre nós.
Dessa forma, saímos da relação de dependência infantil, da situação de pedintes
que esperam tudo de sua senhora, para uma relação igualitária, em que de certa
forma nós nos tornamos Maria uns para os outros. Isto significa que passamos a
nos comportar como pessoas capazes de gerar o divino no humano, capazes de
gerar, em nossa carne, aquele Jesus que não calou sua voz para denunciar
injustiças, que se abriu aos marginalizados, que viveu a ternura e a
misericórdia no cotidiano da vida.
Essa perspectiva modifica nossa relação com Maria e até nossa oração.
Nesse sentido, quando rezamos a ave-maria, nós nos incluímos nessa oração.
Somos cheios da graça do Espírito, capazes de dar frutos benditos e de gerar
justiça, bem, perdão, compreensão, partilha e amor.
A ave-maria se torna mais do que uma reza ou uma devoção: transforma-se numa
oração que nos compromete a ser como Maria é, segundo nossos lábios dizem.
Passa a ser uma proposta de modificação de nossa vida, que nos obriga a ações
concretas no sentido de melhorar o mundo e nossas relações. Por isso, as pessoas
que rezam o terço deveriam se esforçar por fazê-lo como um ato de consciência
de sua própria vida.
Assim, tornariam seu coração não só repleto da presença dos sofrimentos e
alegrias de Maria, mas também dos sofrimentos e alegrias de nosso povo, das
pessoas próximas ou mais distantes, que carregam os pesados fardos do
cotidiano. Essa oração feita como ato de consciência deveria nos levar ao
compromisso de ajudar a suprimir as injustiças que estão em nosso meio e a
crescer em sensibilidade e solidariedade humana.
Os chamados mistérios da vida de Maria são também os mistérios da vida
do povo - nossos mistérios de sofrimento, de gozo e de alegria.
À medida que aproximamos Maria de sua realidade profundamente humana,
estamos fazendo justiça a ela.
E Maria de Nazaré que nos ajudará a entender as devoções que os séculos
de cristandade lhe fizeram e as histórias que dela contaram. É ela que vai nos
dizer que, para além de cada aparição - Fátima, Lourdes, Salete, Carmo - e de
cada nome - Aparecida, Conceição, das Graças, dos Anjos, do Perpétuo Socorro -,
existe uma pessoa com um rosto parecido com o nosso que levou uma vida tentando
ser ela mesma repleta do Espírito Santo e ajudando outras pessoas a serem
igualmente habitações do Espírito. Ser moradia do Espírito é o convite que
Maria de Nazaré nos faz. Não é fácil de ser aceito, mas é um caminho para a
felicidade dos que crêem que o dom da vida é dado em abundância para toda a
humanidade.
E triste ver que nossa sociedade esquece o direito à vida entregue
misteriosamente como dom a todas as pessoas. Nossa sociedade exclui homens,
mulheres e crianças dos bens a que têm direito, impondo a lei do mais forte, a
competição desenfreada, a morte camuflada, o lucro como deus.
E o lucro é um deus terrível, sedento de si mesmo, que beneficia poucos,
conservando-os em tronos de ouro, enquanto a maioria se alimenta com migalhas,
tentando sobreviver com os restos dos banquetes idolátricos. Este ídolo engole
vidas sem se preocupar com seu valor. E ele, infelizmente, tem sido a divindade
de nossa sociedade. É preciso colocá-lo no seu devido lugar para que nossa vida
seja respeitada.
São 6 horas da tarde... É de novo a hora da Ave-maria. É hora de
despertar para a Maria de Nazaré que dorme em nós. Precisamos nos dar as mãos
para sermos coletivamente Maria, habitação do Espírito, cheia de graça, força e
vigor, capaz de gerar no mundo a salvação pela misericórdia, pela justiça, pela
partilha e pelo respeito à vida de cada um. Juntos poderemos repetir, então, de
forma nova e com convicção: "Eis-nos aqui, servidores do Espírito que é
vida. Faça-se em nós a sua Palavra". Amém.
"Agiu com a força do seu
braço,
dispersou os homens de coração
orgulhoso. Depôs poderosos
de seus tronos, e a humildes
exaltou."
(Cântico de Mana - Lc l ,51 -52)
IVONE GEBARA é religiosa, teóloga, professora e coautora
do livro Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres.