Dom Gil Antônio Moreira
Corpus Christi: presença infinita
- SEGUNDA, 08 JUNHO 2015 14:26
- CNBB
Dom Gil Antônio MoreiraArcebispo de Juiz de Fora (MG)
Na vida há vários tipos de presença: a física, quando estamos visivelmente diante das pessoas; a presença espiritual, quando desejamos estar em algum lugar e, por qualquer motivo estejamos impossibilitados; a recordativa, quando evocamos a lembrança de alguém querido que esteja distante, ou que já partiu desta vida e a recordamos com saudade. A presença simbólica se dá nos objetos que guardamos de recordação de alguém: uma foto, uma estátua, um anel, uma flor que, mesmo murcha pelo tempo, me traz lembranças boas de alguém.
Certo dia, entrei na casa de Dona Olímpia. Havia anos que não ia lá. Quando fui pela última vez, seu marido ainda era vivo. Quando agora entrei naquele recinto, um chapéu de feltro cinza, pendurado na parede, era a recordação viva de Sr. José, seu falecido consorte. Ali estava o objeto que lhe assimilara as feições da cabeça, do jeitinho que ele o tomava toda vez que saía e o deixava toda vez que chegava. Ao ver tal chapéu, parecia que aquele bondoso homem ainda se encontrava em casa. Era a sua presença imaginativa, mas de uma imaginação terna e calorosa.
Minha mãe morreu em agosto de 2014. Sua memória está muita viva em nossa mente e em nosso coração. A casa permanece arrumada da forma que ela gostava. A família, de vez em quando, se encontra e saboreia as comidas, sobretudo os doces e biscoitos, do jeito que ela os fazia. Às vezes a gente canta os cantos que ela cantava e recorda fatos do seu tempo. Sobretudo, rezamos todos os dias, as orações que ela nos ensinou desde a infância. Ela partiu, mas sua presença continua viva entre nós.
Tudo isto é importante para entendermos a festa de Corpus Christi. Recordamos, sem cessar, especialmente aos domingos, que Jesus está presente, com uma presença ainda muito mais forte, muito mais profunda, muito mais real que as presenças citadas acima, pois aquele chapéu do Sr. José, com o tempo desapareceu e ninguém o substituiu. A lembrança da mãe nesta intensidade durará enquanto os filhos, e quem sabe, os netos forem vivos. Depois, certamente irá enfraquecendo.
Porém, a presença Eucarística é imorredoura, forte e infinita. É presença pascal. As palavras do Mestre, seus gestos, seu mandamento, sua vida inteira estão vivos em nossa mente, e palpitam fortes em nosso coração, em nossa comunidade, em toda a Igreja. Os seus últimos momentos na terra, a última ceia, o doloroso calvário, a ressurreição esplendorosa nunca sairão dos sentidos dos que nele crêem. São Marcos, ao narrar a ceia final, informa que ele, tendo o pão em suas mãos, disse: Tomai, Isto é o meu Corpo e quando tomou o cálice com vinho e pronunciou as palavras Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos (Cf. Mc 14, 22-23). Sua presença se faz tão forte, que se torna em algo que é mais que natural, é sobrenatural.
O momento da última ceia pascal de Jesus, celebrada com seus discípulos, ficou tão vivamente gravada na mente dos fiéis da Igreja primitiva que os três evangelistas sinóticos a descrevem quase com os mesmos vocábulos (Cf. Lc 22, 14-20; Mt 26, 26-28).
São João, embora não narre a instituição eucarística, registra em seu capítulo 6, um maravilhoso sermão de Cristo sobre Eucaristia, onde se lê: “Minha carne é verdadeira comida, meu sangue verdadeira bebida; quem come deste pão e bebe deste cálice permanece em mim e eu nele” (Jo 6, 56-57).
Também São Paulo, que não era do número dos doze, mas um apóstolo da segunda geração, tendo se convertido depois da morte, ressurreição e ascensão de Jesus, escreveu aos Coríntios e afirmou: Na noite em que ia ser entregue, o Senhor Jesus tomou o pão, e depois de dar graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo entregue por vós. “Fazei isto em memória de mim.” (I Cor 11, 23-24). Paulo continua, nos versículos seguintes, narrando os gestos e palavras de Jesus sobre o cálice com vinho e repete os termos ‘Fazei isto em memória de mim’ (Cf. I Cor 11, 25).
Nos escritos do evangelho e nos comentários de Paulo, o termo ‘memória’ é muito mais expressivo que no idioma português que o traduz como simples recordação. Nos termos bíblicos ‘memória’ significa presença viva, real. Fazer em sua memória o que Cristo fez resulta em tornar misticamente presente o ato e a pessoa do mesmo Cristo. Recordemos que para Deus não há passado e nem futuro, mas tudo é presente. Comungar o santo sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor significa assumir em nossa vida, a vida de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Todas as vezes que nos reunimos para celebrar a Santa Eucaristia, ele se faz presente, se torna alimento para nós, caminheiros da fé; nos dá a graça de entrar em plena comunhão com ele e reviver, num só ato, a ceia, o sacrifício do Calvário e a vitória da ressurreição.
A Igreja desde o princípio acreditou, ensinou e celebrou a presença real de Cristo Jesus nas espécies do pão e do vinho consagrados. Santo Inácio, Sucessor de São Pedro na Cátedra de Antioquia, dos anos 68 a 107, escreveu sobre os hereges: “Eles se abstém da Eucaristia e da oração, porque eles não admitem que a Eucaristia seja a carne de Nosso Salvador, Jesus Cristo, que padeceu pelos nossos pecados”. São Justino, em carta que dirigiu ao Imperador Antonino no século 2º, escreveu: “A Eucaristia nós não a recebemos como pão comum, ou como bebida comum, mas como fomos ensinados, recebemo-la como Corpo e Sangue de Jesus feito homem”. Também Santo Irineu de Lion (130-202) e Tertuliano de Cartago (160-220) tiveram palavras claras sobre a presença real de Jesus na Eucaristia. São Cirilo de Jerusalém, no século 4º, afirmava: “Uma vez que o Senhor disse sobre o pão: isto é o meu Corpo, quem se atreverá a pôr isto em dúvida, que seja ou não? E tendo Ele nos assegurado que o vinho se transforma em seu Sangue, quem poderá contradizer que não é o Sangue do Senhor?”
Muitos outros autores escreveram sobre esta mesma verdade seja nos primeiros tempos do cristianismo, seja nas idades sucessivas da história, conservando a certeza indefectível da Igreja nesta doutrina dada tão claramente pelo próprio Jesus.
Pela Eucaristia, a Igreja ouve continuamente, de forma plena e sensível, a última palavra de Cristo Ressuscitado aos discípulos antes de acender aos céus: “Eis que estarei convosco, todos os dias até o fim dos tempos” (Mt 28,20 ) e se prostra em adoração diante do Pão eucaristizado, para adorar e agradecer pela sua presença viva, real e consoladora entre nós.
Na procissão eucarística, proclamamos exultantes que ele caminha conosco nos caminhos da história, fortalecendo-nos para a construção de um mundo cada vez mais justo e fraterno, e preparando-nos para a convivência perpétua no paraíso. Os tapetes de flores são a expressão do sublime amor que oferecemos àquele que passa em nossa vida, como Rei dos reis, Senhor dos senhores nos conduzindo para a beleza da vida feliz no banquete eterno.
Eis porque a solenidade de Corpus Christi pode ser proclamada como a festa da presença infinita! A única condição para saborear tão sublime e sobrenatural realidade é crer, aceitar a Palavra do Senhor e não colocar limites ao seu amor.
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