Dom
Vilson Dias de Oliveira, DC
Bispo
Diocesano de Limeira, SP
A
quarta-feira de cinzas é o primeiro dia da Quaresma no calendário
cristão ocidental. As cinzas que os cristãos católicos recebem
neste dia é um símbolo para a reflexão sobre o dever da conversão,
da mudança de vida, recordando a passageira, transitória, efêmera
fragilidade da vida humana, sujeita à morte.
Ela
ocorre quarenta dias antes da Páscoa sem contar os domingos (que não
são incluídos na Quaresma); ela ocorre quarenta e seis dias antes
da Sexta-feira Santa contando os domingos. Seu posicionamento varia a
cada ano, dependendo da data da Páscoa. A data pode variar do começo
de fevereiro até à segunda semana de março.
Alguns
cristãos tratam a quarta-feira de cinzas como um dia para se lembrar
a mortalidade da própria mortalidade. Missas são realizadas
tradicionalmente nesse dia nas quais os participantes são abençoados
com cinzas pelo padre que preside à cerimônia.
A
origem das cinzas usadas tem seu significado. Elas são preparadas
pela queima de palmas usadas na procissão de Ramos do ano anterior.
Lembram, portanto, o Cristo vitorioso sobre a morte. A palma é
símbolo de vitória e de triunfo. Assim, se os cristãos aceitam
reconhecer sua condição de criaturas mortais, e transformar-se em
pó, ou seja, passar pela experiência da morte, a exemplo de Cristo,
pela renúncia de si mesmos, participarão também da vida que
ressurge das cinzas. Aqui vale a pena lembrar uma lenda egípcia.
Fênix era uma ave fabulosa que durava muitos séculos e, queimada,
renascia das próprias cinzas. Foi fácil perceber que ela é símbolo
da ressurreição de Cristo e dos que aceitam viver na atitude de
Cristo.
O
padre marca a testa de cada celebrante com cinzas, deixando uma marca
que o cristão normalmente deixa em sua testa até ao pôr do sol,
antes de lavá-la. Esse simbolismo relembra a antiga tradição do
Médio Oriente de jogar cinzas sobre a cabeça como símbolo de
arrependimento perante Deus (como relatado diversas vezes na Bíblia).
Para nós Católicos Romanos esta é um dia de jejum e abstinência.
As
cinzas evocam nossa realidade humana. Através do gesto ritual da
imposição as cinzas, reconhecemos nossa fragilidade e nossa
condição de pecadores como, também, a nossa disposição de
caminhar para o dia maior da ressurreição, vivendo a misericórdia
de Deus, a exemplo de Cristo obediente e ressuscitado.
A
Quaresma é um tempo favorável à renovação de nossa vida
batismal, isto é, de nossa fé. Apesar da secularização e dos
desafios do fenômeno religioso da sociedade contemporânea, o povo
cristão percebe que durante a Quaresma é preciso orientar os ânimos
para as realidades que verdadeiramente contam; que exige empenho
evangélico e coerência de vida, traduzida em boas obras, em formas
de renúncia àquilo que é supérfluo e de luxo, em manifestações
de solidariedade com os sofredores e necessitados, sobretudo com os
jovens (cf Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n.125).
Qual
é o sentido?
A
intenção deste sacramental é levar-nos ao arrependimento dos
pecados, marcando o início da Quaresma; e fazer-nos lembrar que não
podemos nos apegar a esta vida achando que a felicidade plena possa
ser construída aqui. É uma ilusão perigosa. A morada definitiva é
o céu. A maioria das pessoas, mesmo os cristãos, passa a vida
lutando para “construir o céu na terra”. É um grande engano.
Jamais construiremos o céu na terra; jamais a felicidade será
perfeita no vale em que o pecado transformou num vale de lágrimas.
Devemos, sim, lutar para deixar a vida na terra cada vez melhor, mas
sem a ilusão de que ficaremos sempre aqui.
Deus
dispôs tudo de modo que nada fosse sem fim aqui nesta vida. Qual
seria o desígnio do Senhor nisso? A cada dia de nossa vida temos de
renovar uma série de procedimentos: dormir, tomar banho,
alimentar-nos, etc. Tudo é precário, nada é duradouro, tudo deve
ser repetido todos os dias. A própria manutenção da vida depende
do bater interminável do coração e do respirar contínuo dos
pulmões. Todo o organismo repete, sem cessar, suas operações para
a vida se manter. Tudo é transitório… nada eterno. Toda criança
se tornará um dia adulta e, depois, idosa. Toda flor que se abre
logo estará murcha; todo dia que nasce logo se esvai… e assim tudo
passa, tudo é transitório.
Por
que será? Qual a razão de nada ser duradouro?
Compra-se
uma camisa nova e, logo, já está surrada; compra-se um carro novo
e, logo, ele estará bastante rodado e vencido por novos modelos, e
assim por diante.
A
razão inexorável dessa precariedade das coisas também está nos
planos de Deus. A marca da vida é a renovação. Tudo nasce, cresce,
vive, amadurece e morre. A razão profunda dessa realidade tão
transitória é a lição cotidiana que o Senhor nos quer dar de que
esta vida é apenas uma passagem, um aperfeiçoamento, em busca de
uma vida duradoura, eterna, perene.
Em
cada flor que murcha e em cada homem que falece, sinto Deus nos
dizer: “Não se prendam a esta vida transitória. Preparem-se para
aquela que é eterna, quando tudo será duradouro, e nada precisará
ser renovado dia a dia.”
Compreenda
por que a Igreja nos pede para realizar a penitência do jejum
Ao
tratarmos da cura de gastrimia (gula), a primeira coisa que nos vem à
mente, evidentemente, é o jejum. No entanto, sejamos sinceros, quem
é que ainda leva a sério o jejum? Para a maior parte das pessoas, o
jejum é uma prática antiquada, desnecessária, quando não,
completamente absurda.
Até
entre os “bons católicos” a prática do jejum é vista com
desconfiança. Afinal, somos pessoas equilibradas. Nada de
radicalismos! Quando muito, ainda é possível encontrar quem se
recorde do velho Catecismo: “O quarto mandamento [da Igreja]:
jejuar e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja”.
Mas quando é que a Santa Mãe Igreja nos manda jejuar? A Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou, em 1987, a Legislação
Suplementar ao Código de Direito Canônico, que diz o seguinte:
Quanto
aos cânones 1.251 e 1.253:
1.
Toda sexta-feira do ano é dia de penitência, a não ser que
coincida com solenidade do calendário litúrgico. Os fiéis, nesse
dia, abstenham-se de carne ou outro alimento, ou pratiquem alguma
forma de penitência, principalmente obra de caridade ou exercício
de piedade.
2.
A Quarta-feira de Cinzas e a Sexta-feira Santa, memória da Paixão e
Morte de Cristo, são dias de jejum e abstinência. A abstinência
pode ser substituída pelos próprios fiéis por outra prática de
penitência, caridade ou piedade, particularmente pela participação
nesses dias na Sagrada Liturgia.
Bem, talvez, do jejum e
da abstinência na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa, a
maior parte dos católicos se recorde. Porém, é provável que a
maioria não faça a mínima ideia de que a abstinência de carne, às
sextas-feiras, ainda existe! Mas isso não é motivo para que alguém
se sinta mal. Muitos e nobres eclesiásticos sofrem da mesma miséria.
Magra consolação!
“Mas
isso é somente uma lei da Igreja!”, alguém poderia dizer. Depois
de constatar essa obviedade, desfiar um rosário de argumentos contra
a prática do jejum: “Não está na hora de a Igreja deixar de lado
essas tradições medievais? Por que incentivar o jejum? Não existe
algo de mal neste masoquismo de querer se penitenciar? Isso não
prejudica a saúde? Qual o sentido do jejum, se a pessoa não
trabalha para transformar a sociedade?”. Com argumentos desse tipo,
livramo-nos do problema, varrendo-o para debaixo do tapete. Acho que
os Santos Padres não estariam exatamente de acordo com esse
procedimento.
Santo
Tomás de Aquino (1225-1274), que era um mestre em argumentação,
ensina-nos a distinguir duas realidades diferentes no jejum:
a)
O mandamento da Igreja
b)
A lei natural
Os
dias em que eu devo jejuar e as formas de realizar esse jejum são
uma lei da Igreja (a). Mas o jejum não é uma invenção da Igreja.
A necessidade de jejuar é uma lei que Deus imprimiu na natureza
humana (b), ou seja, compete às autoridades da Igreja determinar
alguns tempos e modos de jejuar, já que é dever dos pastores cuidar
do bem das ovelhas. No entanto, mesmo se não houvesse uma legislação
canônica, as pessoas teriam de jejuar, pois se trata de uma
exigência da própria natureza do homem. Sim, é isso mesmo! Por
estranho que possa soar aos seus ouvidos, a ascese e o jejum são
imperativos da ética humana natural e não uma tradição de algumas
religiões e culturas exóticas. O jejum e a abstinência são
instrumentos necessários para que possamos chegar a ser, não heróis
ou semideuses, mas simplesmente humanos”!
Um
apelo na Quarta-feira de Cinzas
Entramos
no tempo da Quaresma, período que antecede a Semana Santa. Ocasião
de nos preparemos para a maior de todas as celebrações da Igreja: a
Ressurreição de Cristo, nossa Páscoa. E este tempo de preparação
se inicia hoje, na Quarta-feira de Cinzas. Na celebração deste dia,
cinzas são colocadas na nossa cabeça ou na testa para que nos
lembremos de onde viemos e para onde vamos: “Como um pai tem
piedade de seus filhos, assim o Senhor tem compaixão dos que o
temem, porque ele sabe de que é que somos feitos, e não se esquece
de que somos pó” (Sl 102,14).
Este
é um tempo favorável a nós. Mas para que possamos ressuscitar com
Cristo, talvez seja necessário mudarmos a direção da nossa vida.
Por isso, no momento em que recebemos as cinzas, ouvimos o seguinte
versículo bíblico: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (cf. Mc
1,15). Mas vamos antes entender onde está situado este importante
alerta de conversão.
Com
a celebração da imposição das cinzas, iniciamos o tempo
quaresmal, ouvindo o convite do Senhor: “Convertei-vos! O Reino de
Deus está no meio de vós”. A proclamação e escuta da Palavra de
Deus, as orações, as ações simbólicas nos possibilitam
experimentar a bondade infinita de Deus, como reza a antífona de
entrada: “Ó Deus, vós tendes compaixão de todos e nada do que
criastes desprezais: perdoai nossos pecados pela penitência, porque
sois o Senhor nosso Deus” (antífona da entrada da Quarta-feira de
Cinzas).
Na
caminhada quaresmal, somos convidados a experienciar o Deus que
acolhe nossa penitência, corrige nossos vícios, cuida de nós
incansavelmente, fortifica nosso espírito fraterno, nos dá a graça
de sermos nós também misericordiosos.
Nos
passos de Jesus, caminhando rumo à Páscoa, revivemos a experiência
d’Aquele que a partir do batismo do Jordão caminha para o “batismo
da Sua morte” (Mc 10,38/ Lc 12,50). Contemplamos o mistério do
coração traspassado e aberto do Redentor, do qual nasce a Igreja e
provém toda a eficácia dos Sacramentos; e donde promana sangue e
água (Jo 19,34), símbolos da Eucaristia e do Batismo.
No
Mistério Pascal, o testemunho concorde do Espírito, da água e do
sangue (1Jo 5, 5-8) que manifesta o “renascer da água e do
Espírito” para entrar no Reino de Deus (Jo 3,5).
Certamente
não é fácil aceitar ser cinza. Contudo, a fé em Jesus Cristo
ressuscitado faz com que a vida renasça das cinzas. Jesus Cristo faz
brotar a vida, onde o ser humano reconhece sua condição de criatura
necessitada da ação de Deus. É entrar na atitude pascal.
Esta
páscoa se vive na conversão, através dos exercícios da oração,
do jejum e da esmola.
A imposição das cinzas não constitui um
mero rito a ser repetido a cada ano. É celebração da vocação do
ser humano, chamado à imortalidade feliz, contanto que realize o
mistério pascal de morte e vida em sua vida fraterna. Que você
tenha uma quaresma santa e fecunda.