Quem lê atentamente o Documento de Aparecida surpreende-se com algumas constatações corajosas a que a Igreja se propõe. Será necessário um tempo longo, paciente, assinalado por muita perseverança, para integrar à nossa vivência eclesial aquelas percepções tão verazes e, ao mesmo tempo, muito impregnadas das características genuínas dos cristãos dos primeiros dias da Igreja. Ao escrever este parágrafo, penso na ênfase a temáticas tão relevantes e de grande recorrência como “encontro pessoal com Cristo”, “conversão pastoral”, “conhecimento da Palavra”, anseio dos discípulos de Jesus em “alimentar-se com o Pão da Palavra”... As citações poderiam se enumerar e alongar. Estas menções pretendem apenas lembrar que se está tocando em questões e possibilidades sem as quais a Igreja poderia desfigurar gravemente sua própria identidade de discípula e missionária.
Ao mesmo tempo, muito já se falou que a humanidade atravessa um severo processo de transformação cultural. O mesmo já recebeu muitos nomes. Aqui, para simplificar, será mencionado apenas aquele já bastante conhecido: a chamada mudança de época. E este fenômeno é impossível mensurar. Tampouco se pode freá-lo. Seus desdobramentos suscitam, a cada dia, novas surpresas e perplexidades. Em meio a toda esta ebulição, quase tudo faz pensar que nos encaminhamos para a passagem de uma realidade de cristandade para outra de diáspora. Há muitos elementos a nos sugerir que, em termos de evangelização, teremos muitas proximidades com os caminhos e situações do cristianismo primitivo. E tudo isso está a instar os discípulos missionários do nosso tempo a indagações sobre os melhores percursos a palmear quando se trata de “transmitir a fé”. Afinal, é ela, a transmissão da fé em Jesus Cristo, a razão fundante de toda a ação evangelizadora.
Os primeiros cristãos não falaram de animação bíblica da pastoral. Mas a sua evangelização era profundamente bíblica; inteiramente perpassada pelas experiências e revelações bíblicas. Para anunciar a pessoa de Jesus Cristo, o Salvador ressuscitado, todas as esperanças do Antigo Testamento eram evocadas. Era assim nos dias apostólicos. Basta observar o pensamento paulino ou as pregações presentes nos Atos do Apóstolos. E quando o anúncio do Evangelho recebeu sua formulação escrita, então quase tudo era matizado pela palavras dos evangelistas e dos apóstolos. Basta pensar nos primeiros escritos catequéticos (Didaqué); nas reflexões de Orígenes, lançando as primeiras raízes da Lectio Divina; e também a fecunda teologia dos Santos Padres. Era a Bíblia, ou melhor, a Palavra, a conferir motivação, a dar ânimo, a suscitar força perseverante e transfigurar o sentido de suas vidas. Porque afinados com a Palavra, seu modo de pensar, de projetar, de realizar e de celebrar, era inteiramente impregnado da força transformadora gerada pelo encontro com o Senhor mediante a Palavra. Eram evangelizadores “biblicamente animados”. Muito animados.
Pois bem, a animação bíblica de toda a Pastoral é um tema que retorna à ribalta nestes últimos tempos. Parece interessante observar o sentido da expressão a partir de sua etimologia. Por este caminho é possível vislumbrar o que se quer acentuar. O termo latino animus refere-se àquela força interior, àquele princípio espiritual que, a partir de dentro, move ou motiva alguém a determinadas escolhas e ações. É como que a alma que suscita dinamismos em favor de uma causa. O contrário é des-ânimo, falta de vigor, de alegria, falta de encanto. O Documento de Aparecida (n. 248) ao propor a animação bíblica da pastoral associa-a com “fonte de evangelização”, com “alimento com o Pão da Palavra”, com “encontro com Jesus Cristo vivo”. Basta observar as imagens de fundo: se secar a fonte, secará o córrego. Se faltar alimento, debilita-se o corpo. Se faltar encontro, vai-se a amizade.
Ainda caminhando pelos trilhos da etimologia, muito ajuda a perceber o sentido originário do termo “pastoral”. Pastoral vem de pastor, que, por sua vez, está ligado a pastagem. E a tal da pastagem é dotada de uma grande força simbólica, associada à vida, à serenidade, à paz. Um dos melhores retratos figurativos do AT é o Sl 23: “O Senhor é o meu pastor, nada me falta”. Em seguida afloram expressões figurativas como “descansar em verdes prados”, “conduzir a águas tranqüilas”, “restaurar forças”, “guiar pelo caminho certo”, “bastão e cajado” que dão segurança, “mesa farta”, “habitar na casa do Senhor”. É este o linguajar do AT para falar de um bom pastoreio. É marcado por experiências ricas de esperanças (“restaurar forças”), de vida generosa e abundante (“verdes prados”), de paz (“descanso”, “águas tranqüilas”). Resultam da gratuidade de Deus, que se volta atento para o seu escolhido. É esta a experiência do salmista.
Por outro lado, Jesus, o bom Pastor, servindo-se de figuras semelhantes, dá um passo decisivo. Não se trata apenas das graças com as quais Deus cumula os seus. Vai mais além: agora se refere a quem Ele é estando com as suas ovelhas. O evangelho de João é quem nos ajuda. No cap. 10 há várias expressões primorosas: “Eu sou o bom pastor”, cuja característica é dar a própria vida em favor das ovelhas (vs. 11.14); sua relação com elas é de conhecimento recíproco (v. 14); elas conhecem a voz do pastor (vs. 4.16). Ora, se a palavra “pastoral” procede desta terminologia, isso quer dizer que a mesma “pastoral” não se volta apenas para a oferta de serviços religiosos. Ainda que estes sejam feitos com generosidade, qualquer programa pastoral terá um caráter de pastoreio somente na medida em que as ovelhas puderem ouvir a voz amorosa do seu pastor e a Ele possam dar sua resposta. E o Povo de Deus “tem radar”, isto é, percebe quando os homens e mulheres de Igreja falam do que “ouviram do Senhor” ou quando é apenas discurso religioso.
Pois bem, agora podem-se tentar algumas achegas à expressão “Animação bíblica da Pastoral”. Antes, porém, cabem algumas premissas: animação bíblica quer se referir a ânimo gerado a partir da Palavra. Palavra é “pessoa”. Não se trata, pois de “animar-se” a partir das idéias ou das estratégias de Jesus. Tampouco se trata apenas de estudá-Lo. O discípulo não ama a pessoa de Jesus simplesmente porque o estuda. Estudá-Lo é possível até sem ser discípulo. Um exemplo será de grande ajuda agora: quem conhece mais um adolescente? Sua mãe, que muito o ama, ou o psicólogo que o examinou com todos os métodos das ciências do comportamento? É evidente que a mãe conhece melhor. Ela procura o especialista porque ama o filho; não o inverso, não procura o especialista para poder amar o filho. Ela e ele necessitarão, provavelmente, da palavra especializada, mas é nas relações de partilha afetuosa e interpessoal que o adolescente e sua mãe se construirão. Isso não se dá com ciência, mas nas experiências de amor vivido.
Voltando à “animação bíblica da pastoral” talvez seja útil começar por dizer o que ela não é. Não é mais uma “pastoral” entre outras, com seu coordenador, sua equipe, seu calendário de encontros e participações. Embora sejam necessários e, mais do que isso, indispensáveis, os encontros de estudo e formação ainda não são o “ânimo vital”, e não necessariamente “pastoreiam”. Então, o que é Animação Bíblica? Trata-se de “ânimo” que brota da Palavra. Palavra não é um conjunto de idéias, não é pensamento, não é conceito sobre Jesus. Palavra, aquela que se tornou Escritura, é portadora da pessoa mesma de Jesus. Algo parecido com a jovem que, ao receber a carta do seu amado, beija-a. Ela não quer beijar o papel, ou algumas frases. Ela está voltada à pessoa amada. O mesmo se pode falar da relação com Jesus mediante a Palavra presente na Bíblia. Por ela, pela palavra bíblica, é possível a amizade com Ele. Pela palavra bíblica se cultiva a afeição, o encontro, o silêncio atento diante dEle, a obediência a Ele, sempre com gratuidade e com confiança.
Em sua bela exortação pós-sinodal, o Papa Bento XVI se refere explicitamente à Animação Bíblica da Pastoral (n. 73). E explica que não se trata de sobrepor um ou outro evento singular a respeito da Bíblia. Ninguém pode falar convincentemente de uma pessoa sem ter-se encontrado com ela. Seria apenas “falar por ouvir dizer”. Seria apenas informação. E ninguém evangeliza oferecendo informações sobre Jesus. Para transmitir a fé, para anunciar a pessoa de Jesus, é necessário tê-lo encontrado; é preciso tê-lo experimentado; é preciso se deixar alcançar por Ele. É vivenciar o fascínio deste encontro, que nunca será “neutro”. Sempre haverá alguma reação-resposta. Alguns personagens dos evangelhos podem nos ajudar: Nicodemos (Jo 3,1-21), a Samaritana (Jo 4,1-12), Zaqueu (Lc 19,1-10), também Paulo, nunca mais foram os mesmos. Tornaram-se “agentes de pastoral” profundamente assinalados pelo encontro com o Senhor.
Pois bem, por Animação Bíblica da Pastoral não quer enunciar novos formatos, novos esquemas e organismos, novas sistematizações organizacionais de paróquias ou dioceses. Mais do que tudo, e antes de qualquer outra iniciativa, por animação bíblica se pretende dizer que todos os agentes evangelizadores, seja eles bispos, padres, religiosos, catequistas, ministros extraordinários, coordenadores, administradores de quaisquer instituições eclesiásticas, que todos tenham o “ânimo”, a linfa interior originada do encontro com Ele mediante a Palavra. E quem o encontra alegra-se com Ele, fala com Ele, compreende com os critérios e valores dEle, interpreta com Ele, assume as escolhas dEle. O agente de pastoral biblicamente animado não passa a fazer mais coisas, ou ter mais outros compromissos de agenda. Não é um modo de fazer. É um modo de ser diante de Jesus Cristo e, por causa dEle, um novo modo de ser diante dos outros.
Não se trata de intimismo. O intimista está à procura de suas conveniências mediante gratificações subjetivas de tipo religioso ou místico. Trata-se sim de intimidade com Jesus. A intimidade cria e aprofunda relações, transforma corações, recria ou renova opções e também move a ações. A intimidade com Ele traz paz e alegria. E se difunde a partir de quem a experimenta. Bento XVI assim se expressou referindo-se a animação bíblica: Que “se tenha realmente a peito o encontro pessoal com Cristo que Se comunica a nós na sua Palavra. Dado que ‘a ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo’, então podemos esperar que a animação bíblica de toda a pastoral ordinária e extraordinária levará a um maior conhecimento da Pessoa de Cristo, Revelador do Pai e plenitude da Revelação divina” (Verbum Domini, 73).
O que fazer para que nossos evangelizadores sejam “biblicamente animados”? Trata-se fundamentalmente de espiritualidade bíblica. Esta pode ser cultivada de diferentes modos. Vale lembrar que a Palavra tem uma “potência sacramental” (cf. Verbum Domini 56; 195) ou seja, ela realiza o que pronuncia. A liturgia, celebrada como verdadeira linguagem do mistério da pessoa de Jesus e a Leitura Orante da Palavra apresentam-se como as melhores possibilidades para que os discípulos de hoje, do mesmo modo como os da primeira hora da Igreja, evangelizem biblicamente inspirados.
D. José Antonio Peruzzo