Padre Tiago Alberione um santo do nosso tempo, mesmo que ainda não canonizado - quis idealizar uma Nossa Senhora em atitude um tanto suspeita, como que querendo "se desfazer" de seu Filho e jogá-lo nos braços de um desconhecido qualquer, por estar ela cansada de tanto peso...
Mas não é disso que se trata, e sim de um gesto de amor e de um ato de verdadeira justiça. Porque Maria não é "dona" do Fruto bendito de seu ventre, nem tem o direito de transformar o Cristo num Deus "doméstico" e exclusivo, para sua própria alegria e satisfação materna. Aquele Filho pertence à humanidade inteira, e à humanidade tem de ser entregue, mesmo que esta acabará por pendurá-lo numa cruz.
A autêntica Nossa Senhora não é aquela que pretende se apropriar de Deus, maternalmente ciumenta e exclusivista. Mas aquela que de Deus foi eleita portadora, para entregá-lo a quem de direito, depositá-lo sobre o altar do sacrifício, para a libertação e salvação de todos.
Porque, se é importante que se saiba o quanto ela ama a Deus, mais importante é que se saiba quanto Deus ama o ser humano. E se nós quisermos aprender a arte de amar o nosso irmão, primeiro precisamos aprender como Deus nos ama: entregando-se a si mesmo.
Não podemos deixar de saudar em Maria a perfeita cristã, uma vez que ela, ao assumir o compromisso de gerar o Cristo, também aceitou a incumbência de entregá-lo ao mundo que é missão de todo cristão.
Agora, seria bom acertarmos nossa teologia com relação a Maria. Precisamos deixar de contemplá-la como a grande privilegiada a se fechar no esplêndido santuário de sua maternidade divina, pois ela é também a doce Mãe de todos nós, com quem partilha tristezas e alegrias, esperanças e incertezas, vitórias e derrotas.
Ela não pode ser vista como a escolhida de Deus, a se isolar em nicho de altivez. Pois é também a doce Irmã dos que esperam no Cristo, a Irmã de todas as mães que aceitam a maternidade com alegria, de todas as mulheres discriminadas e privadas de seus direitos, de todos os jovens que têm a coragem de fazer de sua vida um serviço.
Nem é a "cheia de graça" a esnobar os pecadores, os miseráveis, os famintos e todos os bóias-frias da vida. Pois ela é também a doce companheira de caminhada de todos aqueles que carregam o peso da opressão, a cruz da fome, a canga da injustiça e a humilhação do pecado.
Na hora em que reconhece as dádivas com que Deus a cumulou, Maria não abandona este mundo, não atraiçoa suas raízes humanas, nem fica se deliciando com o cântico de todas as gerações a proclamá-la bem-aventurada. Fica ao lado do homem oprimido, explorado e usado; não ao lado dos orgulhosos, que destroem o ser humano para subirem mais alto na vida.
Fica ao lado de todos os órfãos, dos deserdados, dos despojados de sua honra, dos roubados de suas esperanças e de suas aspirações; não ao lado dos poderosos que, do alto de seus tronos abusivos, mandam e desmandam, decidem pela vida e pela morte.
Maria é a cristã por excelência, porque se fez obediente à Palavra de Deus e soube repartir com toda a humanidade os dons que de Deus recebeu, inclusive seu próprio Filho.
Hoje, estamos curtindo um tempo violento. Este é um mundo em que o homem se tornou lobo para o outro homem, em que o mais forte instrumentaliza o mais fraco, o mais rico explora o mais pobre, o mais sabido coloniza o mais ignorante, o mais esperto faz a cabeça do mais desprevenido e o desonesto quer levar vantagem na pele do honesto...
Não é verdade que o mundo caminha de acordo com o projeto de Deus, que é projeto de amor e de justiça. Caminha de acordo com o projeto dos poderes político e econômico, de onde o amor foi banido e a justiça é a grande ausente.
Então, é a nossa vez de "adiantar-nos", de ocupar o lugar de Maria e de encarnar o seu carisma no cotidiano do povo de Deus. Fazer-nos servos da Palavra e proclamadores da mesma. Sermos aqueles que providenciam o vinho da fé, da esperança e do amor; aqueles que denunciam as loucuras dos orgulhosos e aqueles que tomam a defesa dos fracos, dos pobres e dos sofredores.
INCONFORMISMO Assumir, hoje, o carisma de Maria significa olhar com olhos críticos e de coração inconformado para a situação em que vivemos; dizer ao homem que o remédio existe e se chama Cristo, e é só colocando-o no coração do mundo, que este pode ser transformado. Por enquanto, há orgulhosos firmemente assentados em seus tronos ilegítimos, e há humildes aguardando sua vez de serem lembrados, reerguidos e restabelecidos em sua dignidade de filhos de Deus. Há uns poucos ricos acumulando os tesouros da terra e as riquezas produzidas pelo trabalho, pelo suor e pelo sofrimento de muitos, e há pobres pedindo para não serem ceifados pela fome, aguardando o momento em que possam sentar à mesa da igualdade e da fraternidade. Este é o nosso mundo, que herdamos e que precisamos aceitar e amar, apesar de tudo. Só que não podemos amar nem aceitar a situação pecaminosa em que ele foi jogado... Infelizmente, acabamos simpatizando com o conformismo e convivendo com nossas bem conhecidas contradições: sonhar com um mundo mais justo e nada fazer para derrubar a injustiça; sonhar com um mundo mais irmão e nada fazer para acabar com a violência; sonhar com um mundo de amor e nada fazer para destruir o ódio; sonhar com um mundo que respeite e cultue a vida e nada fazer para segurar a marcha da morte. É preciso fazer nosso o Cântico de Maria, que não nos foi transmitido só para ser proclamado em nossas assembléias dominicais, e sim para ser vivenciado por todos nós, assumindo também o programa nele contido. Porque, enquanto permitirmos que os ambiciosos dominem a terra, enquanto ficarmos omissos perante a fome aprontada pelo egoísmo humano não teremos o direito de proclamar o Cântico de Maria. O retrato mais expressivo de Maria no livro do Apocalipse (cap.12). Ela é a Mulher-Igreja, delegada a carregar em seu seio a frágil plantinha da fé, na forma de uma criança. É também o retrato de todas as mulheres cristãs, que ao longo dos séculos souberam guardar no coração, à semelhança de Maria, o depósito da fé em Jesus Cristo. Do lado oposto está o dragão, símbolo de todos os poderes opressores deste mundo, com sua grandeza e onipotência, sempre de tocaia para estrangular a "criança", isto é, a semente da fé. A Mulher-Igreja, porém, por intervenção de Deus, irá sobreviver e a fé também. Desde que foi semeada no coração humano, a partir de Abraão, a fé teve de fazer as contas com os mais variados impérios da terra: do Egito, da Babilônia, de Roma e assim por diante, até os Blocos Atômicos de hoje, o Ocidental e o Oriental... E que os manipuladores da história devem ter percebido que a semente da fé possui força suficiente para derrubá-los e aniquilá-los. Principalmente depois que ela se tornou crença no Ressuscitado, vencedor da morte e libertador do homem.MARIA-MULHER Na atualidade, só aparentemente os poderes terrestres viraram mais civilizados, no sentido de que matam mais cientificamente. Mas há continuidade entre os antigos e os modernos, capazes - estes últimos - de arrasar a Terra num piscar de olhos. De modo que, hoje, o dragão leva o nome de "Blocos Atômicos". Pode-se objetar que o Bloco Ocidental não luta contra a f é e que o Bloco Oriental já deixou de lutar contra ela. Mas isso não passa de pura ilusão. Porque, só o fato de este arsenal de morte subsistir, já é heresia e negação da fé, atentado permanente contra a vida e blasfêmia contra Deus - a pior vergonha do gênero humano e o maior pecado do mundo. Perante o aparato das forças ateias está a fé no semblante da criança indefesa, carregada por Maria-Mulher. Portadora da Vida, portadora de Deus e, portanto, da fé, ela é a primeira cristã a encabeçar e puxar, atrás de Cristo, a caminhada da Igreja. E nós podemos recordar a coragem, recuperar a esperança e levantar a cabeça, pois a "criança" será mais uma vez defendida por Deus e o dragão definitivamente estará derrotado. Não, porém, sem a nossa colaboração... Virgílio Ciaccio é sacerdote paulino, redator do semanário O domingo.