Orani João, Cardeal Tempesta
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
A Igreja celebra, dentro da oitava do Natal, a Festa dos Santos Inocentes, dia em que o Evangelho relata a atrocidade do rei Herodes, em seu tempo, ao ordenar o assassinato dos meninos de dois anos para baixo, na intenção de junto deles matar também o Menino Jesus, a quem ele julgava ser também um rei apenas deste mundo e que, por isso, um dia, lhe tomaria o trono.
Quando falamos nos Santo Inocentes, cujos nomes são para nós desconhecidos, mas estão junto com Deus no céu a interceder por nós, logo somos levados a pensar apenas naquelas inocentes e indefesas vítimas do homicídio no ventre materno por meio do aborto, pecado gravíssimo que clama aos céus por vingança, conforme Gênesis. Sobre este ponto, temos, repetidamente, feito ouvir nossa voz de discordância por pronunciamentos, notas e artigos, e, em contrapartida, na defesa da vida desde a concepção até o seu fim natural.
Neste ano, o Papa Francisco enviou aos bispos do mundo inteiro uma Carta por ocasião desta Festa que, em meio às alegrias natalinas e esperanças do Ano Novo, pode passar em branco para não poucas pessoas. O Santo Padre lembra outro aspecto ou uma faceta diferente, mas prenhe de sentido, no que toca aos Santos Inocentes: as crianças já nascidas, mas cuja dignidade é vilipendiada pelas diversas formas de escravidão dos nossos tempos. Também essas interessam à Igreja, dado que seria incoerente defender o nascimento de alguém para deixá-lo, depois, ao léu da vida.
Não, a Mãe Igreja tenta, não obstante as forças da cultura da morte, acompanhar cada ser humano em toda a sua caminhada terrestre com os meios materiais, psicológicos e sacramentais necessários, a fim de que viva o melhor possível, ou com a mínima dignidade neste mundo e, após a morte, possam gozar da vida eterna no céu.
Passando, em especial, ao conteúdo da Carta do Papa aos Bispos, datada de 28 de dezembro de 2016, além do que já dissemos, somos convidados a meditar sobre um dado importante: as alegrias natalinas não podem nos iludir sobre as agruras do sofrimento humano, aqui representadas no choro de Raquel. Escreve o Pontífice: “Os evangelistas não se permitiram mascarar a realidade para torná-la mais credível ou atraente; não se permitiram criar um fraseado ‘bonito’, mas irreal. Para eles, o Natal não era um refúgio imaginário onde esconder-se perante os desafios e injustiças do seu tempo. Ao contrário, anunciam-nos o nascimento do Filho de Deus envolvido também numa tragédia de dor. No-lo apresenta com grande crueza o evangelista Mateus, citando o profeta Jeremias: ‘Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto; é Raquel que chora os seus filhos’ (2,18). É o gemido de dor das mães que choram a morte de seus filhos inocentes, causada pela tirania e desenfreada sede de poder de Herodes”.
“Um gemido que podemos continuar a ouvir também hoje, que nos toca a alma e que não podemos nem queremos ignorar ou silenciar. Hoje, entre o nosso povo, infelizmente – escrevo-o com profundo pesar –, ouve-se ainda a lamentação e o pranto de tantas mães, de tantas famílias, pela morte dos seus filhos, dos seus filhos inocentes”.
Sim, os nossos tempos também são difíceis, ninguém pode negar isso nem deixar de agir, como fez São José na defesa de Jesus Menino em seu tempo. E aqui entra um ponto central para nós, Bispos, no incentivo à ação de todo povo de Deus: “Hoje é pedido o mesmo também a nós, pastores: ser homens capazes de ouvir sem ser surdos à voz do Pai e, deste modo, poder ser mais sensíveis à realidade que nos rodeia. Hoje, tendo por modelo São José, somos convidados a não deixar que nos roubem a alegria; somos convidados a defendê-la dos Herodes dos nossos dias. E precisamos de coragem, como São José, para discernir essa realidade, levantar-nos e dar passos decisivos (cf. Mt 2,20). Uma inocência dilacerada sob o peso do trabalho ilegal e escravo, sob o peso da prostituição e da exploração. Inocência destruída pelas guerras e pela emigração forçada, com a perda de tudo o que isso implica. Milhares de crianças nossas caíram nas mãos de bandidos, de máfias, de mercadores de morte, cuja única coisa que fazem é malbaratar e explorar as suas necessidades”. Quem aqui não se lembra de tantas tristes realidades que nos cercam em nosso dia a dia?
Continua, no entanto, o Papa: “Hoje, apenas como exemplo, 75 milhões de crianças – por causa das emergências e das crises prolongadas – tiveram de interromper a sua instrução. Em 2015, 68% da totalidade das pessoas objeto de tráfico sexual no mundo eram crianças. Por outro lado, um terço das crianças que tiveram de viver fora do seu país, fê-lo por deslocamento forçado. Vivemos num mundo onde quase metade das crianças que morrem com menos de 5 anos é por desnutrição. Calcula-se que, no ano de 2016, 150 milhões de crianças realizaram um trabalho infantil, muitas delas vivendo em condições de escravidão. Segundo o último relatório elaborado pela UNICEF, se a situação mundial não mudar, em 2030 serão 167 milhões as crianças que viverão em pobreza extrema; 69 milhões de crianças com menos de 5 anos morrerão entre 2016 e 2030, e 60 milhões de crianças não frequentarão a escolaridade básica”. Daí, a questão: que faremos nós diante dessa lamentável e desafiadora realidade?
Na sua coragem ímpar, o Papa, assim como seu predecessor Bento XVI, não deixa de tocar na séria, mas vergonhosa chaga da pedofilia que grassa a humanidade, e chegou a atingir alguns homens de Igreja. Fala Francisco: “Ouçamos o pranto e a lamentação destas crianças; ouçamos também o pranto e a lamentação da nossa Mãe Igreja, que chora não apenas pela dor provocada aos seus filhos mais pequeninos, mas também porque conhece o pecado de alguns dos seus membros: o sofrimento, a história e a dor dos menores que foram abusados sexualmente por sacerdotes. Pecado que nos cobre de vergonha. Pessoas que tinham à sua responsabilidade o cuidado destas crianças destruíram a sua dignidade. Deploramos isso profundamente e pedimos perdão. Solidarizamo-nos com a dor das vítimas e, por nossa vez, choramos o pecado: o pecado que aconteceu, o pecado de omissão de assistência, o pecado de esconder e negar, o pecado de abuso de poder. Também a Igreja chora amargamente este pecado dos seus filhos e pede perdão. Hoje, recordando o dia dos Santos Inocentes, quero que renovemos o nosso empenho total para que tais atrocidades não voltem a acontecer entre nós. Revistamo-nos da coragem necessária para promover todos os meios necessários e proteger em tudo a vida das nossas crianças, para que tais crimes nunca mais se repitam. Assumamos, clara e lealmente, a determinação ‘tolerância zero’ neste campo”. Grande, mas necessário desafio a cada um de nós, hoje, quando temos a responsabilidade de trabalhar com pessoas de todas as idades e condições sociais, incluindo, é óbvio, as crianças, preferidas de Jesus Cristo.
Termina o Papa desejando, nas alegrias natalinas, o empenho na defesa dos inocentes de nosso tempo. Perguntar quem são eles parece desnecessário, é preciso abrir a mente e o coração e agir em defesa da vida e contra a cultura da morte em quaisquer de seus aspectos. Que Deus nos ajude nessa ingente e importante missão!
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