Todo
o Evangelho de Marcos está orientado para a morte de Jesus. Desde
o capítulo 3, após ter feito um milagre ao sábado, o Mestre já
estava sentenciado pelas autoridades judaicas para morrer: «Assim
que saíram [da sinagoga], os fariseus reuniram-se com os partidários
de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus» (Mc 3,6).
De
facto, parece que os primeiros acontecimentos da vida de Jesus, que o
evangelista escreveu, foram os relacionados com a sua Paixão. Mateus
e Lucas seguiram o mesmo esquema e utilizaram a maior parte do seu
texto. Daí os quatro Evangelhos darem uma enorme importância à
Paixão e Ressurreição de Jesus.
Importância
da Paixão-Ressurreição
Porquê
uma tal importância? Porque o acontecimento fundamental da vida de
Jesus e também dos cristãos é precisamente a Ressurreição.
Ora,
não é possível a Ressurreição sem a Paixão; pois a Ressurreição
é a passagem da morte à vida; e, para haver esta vida nova, é
necessário que haja a certeza absoluta da morte. De outro modo, não
haveria Ressurreição, mas outra coisa qualquer, como a
ressuscitação, a revivência, que são coisas bem diferentes.
Este
motivo explica o cuidado e os pormenores com que todos os
evangelistas descrevem a Paixão e morte de Jesus.
Segunda
parte de Marcos:
Preparação
para a Paixão-Ressurreição
O
Evangelho de Marcos foi planeado pelo seu autor em duas partes bem
delimitadas: desde o seu título (1,1), até 8,29 – onde Pedro, em
nome dos outros Onze, confessa o messianismo (humano) de Jesus – há
vários lampejos da divindade de Jesus, por entre manifestações
evidentes de uma humanidade quase escandalosa. Jesus fez-se tão
humano, que os próprios discípulos duvidam continuamente da
sua divindade. Por isso interrogam-se: «Quem é este?» (4,41).
Jesus
ensina o seu projeto messiânico
Por
esse motivo, a partir de 8,29 – isto é, na segunda parte do seu
Evangelho – Marcos tem o cuidado de nos apresentar Jesus a ensinar
aos discípulos o essencial do seu projeto messiânico. Enquanto
Pedro (e os outros Onze) quase exigem de Jesus um messianismo
político, humano, que libertasse o povo dos romanos e lhes abrisse o
caminho para uma brilhante carreira político-militar, Jesus
ensina-lhes que o projeto do Pai para Ele realizar é exatamente
oposto ao que eles lhe propõem.
Por
isso, Jesus vai fazer três ensinamentos teóricos, antes que
aconteça a sua Paixão; mas apresenta-lhes também um exemplo
prático da sua divindade: aTransfiguração no alto monte
(9,2-10).
«Começou,
depois, a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer
muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos
doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias. E
dizia claramente estas coisas.
Pedro,
desviando-se com Ele um pouco, come-çou a repreendê-lo. Mas Jesus,
voltando-se e olhan-do para os discípulos, repreendeu Pedro,
dizendo-lhe: “Vai-te da minha frente, Satanás, porque os teus
pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens”» (Mc
8,31-33).
Este
ensinamento para corrigir a “ignorância” dos Doze era de tal
modo escandaloso que Pedro teve mesmo a coragem de “repreender”
Jesus por semelhante afirmação… Mas ouviu também a resposta que
merecia: depois de lhe chamar Satanás, Jesus reprova a sua
ideia acerca do seu próprio messianismo: «Os teus pensamentos
não são os de Deus, mas os dos homens.» De facto, Pedro
queria que Jesus fosse um messias simplesmente humano, como
outro rei qualquer.
Resultado:
ignorância radical dos Doze
Qual
foi o resultado deste anúncio de Je-sus e da respetiva repreensão
de Pedro? A ignorância radical dos Doze acerca do que Ele tinha
ensinado, como se pode constatar:
«Quando
estavam em casa [em Cafarnaum], Jesus perguntou: “Que
discutíeis pelo caminho?” Ficaram em silêncio porque, no
caminho, tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o
maior. Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: “Se alguém
quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de
todos”.» (Mc 9,33-35).
Mas
esta ignorância radical dos Doze começa a tornar-se crónica,
quando, após estes dois ensinamentos, dois irmãos – Tiago e João
– pedem a Jesus nada menos que os dois melhores cargos políticos,
quando Ele tomar pos-se do trono real em Jerusalém (!). Pior ainda,
o assunto ameaçava fazer explodir o grupo, que Jesus com tanta
solicitude tinha formado; pois, «os outros dez, tendo ouvido
isto [o pedido dos dois irmãos], começaram a indignar-se
contra Tiago e João». Pelo modo como S. Marcos nos apresenta a sua
reação, Jesus deve ter perdido a paciência com tanta “ignorância”:
«Jesus
chamou-os e disse-lhes: “Sabeis como aqueles que são considerados
governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e
como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre
vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo; e
quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de
todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por todos”» (Mc 10,42-45).
Este
é já o terceiro ensinamento de Jesus sobre o mesmo assunto: depois
da afirmação do messianismo (errado) posta na boca de Pedro (8,29),
Jesus, como Mestre divino, vai corrigindo os discípulos para repor a
verdade da sua missão.
No
entanto, estes três ensinamentos dados aos discípulos sobre a
Paixão-Ressurreição não deram os frutos que Jesus esperava; de
tal modo que, na hora decisiva, quando o Mestre é preso no jardim de
Getsémani pelos guardas do Templo, a atitude dos discípulos,
segundo Marcos, foi de traição total e deserção geral: «Então,
os discípulos, deixando-O, fugiram todos.»
A
verdade da Paixão de Jesus: dar a vida por todos
Se
repararmos bem no terceiro ensinamento de Jesus, a sua Missão e o
seu messianismo consiste em dar a vida por toda a
humanidade, numa atitude de serviço total.
Efetivamente,
Jesus pede aos discípulos que não sejam como os grandes da
sociedade civil, que têm autoridade e poder e
querem sempre ser os primeiros. O serviço total de Jesus
está em dar a vida. Mais ainda, este é o grande sacrifício de
que a humanidade precisava para se redimir dos seus pecados. Esta
ideia está expressa no termo colocado na boca de Jesus: «em
resgate por todos», termo próprio da linguagem sacrificial.
A
Paixão de Jesus é, assim, o sacrifício que o Filho de Deus feito
homem ofereceu, «uma vez por todas» (Heb 7,27), pela
humanidade.
A
Paixão de Jesus desabrocha na Ressurreição
Como
foi dito acima, a Paixão de Jesus está em função da sua
ressurreição. Não é possível haver Ressurreição sem uma
verdadeira morte.
119
versículos sobre a Paixão e apenas 8 para a Ressurreição
A
Paixão, assim descrita com todos os por-menores, pretende provar que
não era possível que Jesus ficasse vivo, depois de um tão grande e
prolongado sofrimento. Marcos dedica-lhe os capítulos 14 (72 vv.) e
15 (47 vv.), num total de 119 versículos. Portanto, podemos afirmar
que a Ressurreição é uma rosa branca que desabrocha dos espinhos
tingidos do sangue da Paixão de Jesus.
Marcos
dedica à Ressurreição de Jesus apenas os 8 primeiros versículos
do capítulo 16; mas há uma intensidade muito grande nestes
versículos:
-
algumas mulheres compraram perfumes para prestar a última homenagem
ao corpo humano de Jesus, pois não tiveram ocasião de o fazer
depois da sua morte;
-
vêm «muito cedo, no primeiro dia da semana»;
-
têm um problema: «Quem nos irá tirar a pedra do
sepulcro?» (16,3). Mas verificam que este problema está
resolvido: «a pedra tinha sido rolada» e o sepulcro já
estava aberto;
-
o problema da unção do corpo de Jesus também já estava resolvido,
pelas palavras de «um jovem sentado à direita, vestido com uma
túnica branca»: “Buscais aJesus de Nazaré, o
crucificado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham
depositado. Ide, pois, e dizei aos seus discípulos e a Pedro:
“Ele precede-vos a caminho da Galileia; lá o vereis, como vos
tinha dito.”
- «Saíram,
fugindo do sepulcro, pois estavam a tremer e fora de si. E não
disseram nada a ninguém, porque tinham medo» (16,6-8).
O
“terror divino” das mulheres prova a aparição do Ressuscitado
As
mulheres ficaram plenamente convencidas de que Jesus tinha mesmo
ressuscitado. As provas estavam à vista: a grande pedra rolada e o
sepulcro aberto e vazio; um mensageiro celeste (o próprio Jesus?); a
mensagem, que devem comunicar aos discípulos, a relembrar o que
Jesus lhes tinha dito antes: «Mas, depois de Eu ressuscitar,
hei de preceder-vos a caminho da Galileia» (14,8).
Mas
o que mais surpreendeu as mulheres foi o mensageiro celeste a
garantir a verdade da Ressurreição de Jesus: «Buscais a Jesus
de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou; não está aqui.» Isso
nota-se também na sua reação “negativa”, o que nos parece
estranho. Como é que uma boa notícia – a Ressurreição de Jesus
– pode causar semelhantes atitudes nas mulheres?
De
facto, a sua atitude é traduzida numa longa série de verbos
negativos:
-
elas saem do túmulo, mas a fugir, como se
encontrassem um inimigo;
-
ficaram a tremer, certamente com medo;
- estavam
fora de si, isto é, cheias de pavor;
-
devido ao grande medo, perderam a fala, não dirigindo a palavra
a ninguém;
-
confirmação de tudo isto: porque tinham medo.
A
causa principal destas atitudes é certamente o medo do divino que
está presente no mistério do sepulcro vazio e no personagem
celeste. Trata-se do chamado “terror divino”, pois quando um ser
divino se manifesta ao ser humano, este sente em si o temor do que
lhe é estranho, do mundo do além, como se verifica em muitos textos
bíblicos.
Mas é
precisamente aqui que está a importância deste texto das
mulheres no sepulcro: o seu terror, com toda essa carga negativa,
transforma-se num fator evidentemen-te positivo; isto é, esse
terror manifesta que as mulheres viram mesmo o Ressuscitado, tocaram
o mistério da Ressurreição. Os verbos negativos, mencionados
acima, provam, pois, o facto da Ressurreição de Jesus, pois Ele
também se manifesta nos acontecimentos negativos da nossa vida.
As aparições
do Ressuscitado, que vêm a seguir (16,9-18), não pertenciam ao
Evan-gelho de Marcos. Foi alguém que trouxe, dos outros Evangelhos,
resumos de aparições, para dar um ar mais positivo e alegre (?) ao
final deste Evangelho, que só aparentemente era negativo, com as
mulhes esbaforidas e a fugir do sepulcro…
Encontrar
Jesus, hoje, na paixão do mundo
Neste
tempo de Páscoa, toca-nos, não apenas ir ao túmulo vazio do Senhor
ressuscitado, mas encontrá-lo na paixão dos sofrimentos e crises do
nosso mundo.